O cantor espanhol Niño de Elche durante show de abertura da 35ª Bienal de São Paulo, na noite de quarta Foto: Jotabê Medeiros

Já conhecido mundialmente como sendo o artista que colocou do avesso o tradicional gênero flamenco, o cantor e compositor espanhol Niño de Elche fez sua primeira apresentação no Brasil no final da tarde desta quarta-feira, 6 de setembro, como convidado especial da 35ª Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera. Com o auditório da mostra lotado (cerca de 400 pessoas aguardaram na fila por mais de meia hora para conseguir lugar para a apresentação), o show de Niño de Elche converteu-se num tipo de transe coletivo inesperado, extraordinário, único, um marco na história das bienais.

Muitas vezes delicado (pensem em algo similar, por exemplo, a um Caetano Veloso cantando Tonada de la Luna Llena), noutras violento e anárquico (não raro gutural e paranóide como um show de metal do Barón Rojo), Niño de Elche faz com a voz e o corpo aquilo que Hermeto Pascoal também propõe, usando o arfar, o gargarejo, o pigarro e os refluxos como “acordes”, tornando os gêneros desencarnados, dotando a música de respiração e olfato para criar uma experiência que se situa entre o espiritual e o inaugural, o terreno nunca pisado. O desregramento dos sentidos se processa do começo ao final do show de Niño de Elche – nome que significa Menino de Elche, sendo Elche a cidade de influência valenciana no sudeste espanhol (a 400 km de Madri) onde ele nasceu com o nome de Francisco Contreras Molina, há 38 anos.

Acompanhado do violonista Yerai Cortés, o percussionista Iván Mellén e a bailarina Poliana Lima, todos vestidos de preto, Niño de Elche abriu a apresentação com uma canção na qual que se fez acompanhar somente por palmas e uma percussão quase mecânica (o violonista nem tocou as cordas, só a caixa do violão). A letra de El muermo, baseada num poema do catalão Jordi Pope (1953-2008) e na qual o artista repete incansavelmente um apelo (“Mamá, mamá, mamá, a donde estás, mamá, que no te veo?”), sugere o pânico da solidão e do enclausuramento, a sensação de um ser humano tateando no escuro e emitindo os sons dessa desmaterialização. Poliana Lima dançava à frente da banda, deitada no chão e, algumas vezes, despregando-se do chão como se tentasse levitar.

Em Cabales americanas, a música seguinte, já se podia ouvir o esqueleto de uma canção tradicional, mas envolta em um ambiente de santería, percussão de palhas, psicodelia pura embalada por um violão de sustos e paisagens ibéricas. Niño de Elche libertava a plateia da claustrofobia imposta pela corajosa abertura e mostrava a potência de sua arte, feita de desintegração mais do que de reafirmação. Niño de Elche atua com as mãos, com o caminhar em cena, com o olhar, apoiado na firmeza com que encara os desafios que propõe à plateia.
Soleá bailable trouxe a seguir o flamenco mais reconhecível (Niño prefere chamar de ex-flamenco, pela atitude de desconstrução que imprime ao gênero), embora nada soe trivial na interpretação de Niño. Iván Mellén tocou até sinos dentro d’água, na dervixiana Campanilleros, e a versatilidade do violonista, Yeari, se apruma entre o virtuosismo clássico e um minimalismo quase distraído, mas furiosamente atento aos códigos de cada gênero.

De cultura sevilhana, porém de tomada política imantada pelo sentimento do exílio latino-americano, Niño encarou Canto por no llorar como se estivesse rezando uma missa em um desembarque de refugiados. A música é um conhecido tango argentino que levou o cantor uruguaio-argentino Francisco Canaro ao êxito nos anos 1920. Entretanto, Niño de Elche focou sua interpretação mais na versão de bulería consagrada por Manuel Vallejo, um dos expoentes do flamenco espanhol. Bulería é um dos andamentos mais festivos e rápidos do flamenco, adequados para o baile (com riqueza de contratempos, cadências, falsetes e tensões).

Ao encarar as Sevillanas de los tres, Niño se inclinou para a tradição com dois punhais nas mãos: o da reverência e o da insolência. Com assaltos da viola de romaria, ele revisitou versos consagrados de uma tradição que vive um novo sentido em seu visionarismo, uma redenção poética pungente. “Fui preguntando/De sepulcro en sepulcro/Fui preguntando/De sepulcro en sepulcro/Fui preguntando/Fui preguntando/Si han enterrado a un hombre/Que murió amando/Respondió uno/Mujeres a millares/Hombres ninguno“.

A viola mais crua e o canto ritualístico conduziram a melancolia de La Farruca de Juli Vallmitjana. Farruca é uma forma de flamenco do século 19 surgida na Galícia, e sua execução é pontuada e às vezes interrompida por interjeições masculinas, como saudações de rua. A essa, Niño cola a música seguinte, Seguiriya madre, que já foi definida na Espanha como “flamenco-punk”. A essa altura do show, Niño de Elche já tinha elegantemente dispensado uma voluntariosa admiradora brasileira que subira ao palco para fazer figuração e preparava-se para recolher sua banda e as pequenas caixas de mágica com que hipnotizaram a plateia. Não haveria bis.

Niño agradeceu com sincera gratidão a Manuel Borja-Villel, ex-diretor do Museu Reina Sofía, de Madri (e um dos curadores dessa bienal) pelo convite para mostrar sua arte no Brasil, que não se limitou ao concerto único. Artista interdisciplinar, Niño também deixou uma sala na mostra, Auto Sacramental Invisible, uma instalação sonora no andar roxo (2º piso) baseada na obra do artista José Val de Omar (1904-1982), que o cantor definiu como um misto de “cineasta e alquimista” da Espanha.

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