“Que Rabão“, décima terceira faixa de Versions of Me, sustenta a afirmação da cantora e compositora Anitta de que seu quinto álbum é um trabalho trilíngue, em português, espanhol e inglês. A partir de rudimentos deixados pelo conterrâneo Mr. Catra (1968-2018), a cantora carioca nascida em Honório Gurgel dispara alguns versos em portunhol, tipo “joga na minha cara mucho loca, que belleza/ já que eu tô gostosa, cosa linda, que princesa“, metade em português, metade em espanhol. A produção é do carioca Papatinho e a voz processada do funkeiro fluminense (de Duque de Caxias) Kevin o Chris surge como mormaço bem carioquês, comunicando o alto escalão do funk brasileiro com a vocação internacional de Versions of Me. Ao final de “Que Rabão”, o rapper californiano YG (ou Young Gangsta) entra em cena com versos sexuais em que “dick” rima com “ass”. O tripé está formado.
Essa, no entanto, não é a verdade precisa sobre o primeiro fruto do contrato de Anitta com a matriz estadunidense da Warner Records, em associação com a subsidiária local Warner Music Brasil (que vem acompanhando-a desde a estreia com Anitta, em 2013). Se na filial brasileira Anitta tem por colegas de elenco Ludmilla, Iza, Ferrugem, Kevinho, Pedro Sampaio e Pocah, na matriz passa a dividir espaço com nomes como a inglesa Dua Lipa, a kosovar Rita Ora, a mexicana Sofía Reyes, o canadense Michael Bublé, o francês David Guetta, os estadunidenses Red Hot Chili Peppers, entre muitos. Foi uma canção em espanhol, “Envolver” (lançada avulsa em novembro passado), que há um mês alçou Anitta ao primeiro lugar nas paradas mundiais das plataformas digitais e a segunda posição na parada Billboard Global 200. O álbum explora esse filão, com oito faixas em inglês, duas em espanhol (as de abertura, “Envolver” e “Gata”) quatro misturadas entre espanhol e inglês e a solitária “Que Rabão” em português.
Na esteira de “Envolver”, uma música cuja forte sexualização revelou potencial para desagradar simultaneamente machistas e feministas, a internacionalização definitiva da artista hoje com 29 anos lança o português para plano bem coadjuvante. As únicas outras participações do idioma acontecem em “Girl from Rio” (que seria o título do disco, mas não foi), em frases que aparecem camufladas no contracanto, como “vai, malandra, gringo canta, todo mundo canta“, e em “Faking Love”, que cita Ipanema e a palavra “bonita”. Por ora, os tempos dos discos Brasil-centrados Anitta, Ritmo Perfeito (2014) e Bang! (2015) são águas passadas.
Cultivada em singles desde 2016 e testada sem tanto êxito no anterior Kisses (2019), a internacionalização de Anitta tomou impulso inédito quando, ainda em 2019, ela passou a ser empresariada por Brandon Silverstein, que já gerenciava a carreira da cantora r’n’b norte-americana Normani, revelada no reality show musical The X Factor quando integrava o girl group Fifth Harmony. Silverstein ajustou Anitta aos padrões industriais de dez entre dez divas pop da atualidade, deixando-a em condições de competir num mercado global restrito, que Anitta vem escalando com bravura.
Fruto dessa linha de montagem de hits, Versions of Me reúne, em 15 faixas, 22 diferentes produtores ou times de produção, dos quais o mais presente (e também produtor-executivo do álbum) é o músico norte-americano (do Colorado) Ryan Tedder, vocalista da banda pop-rock dançante OneRepublic. Ocupando vários nichos musicais simultaneamente, Tedder acumula produções para Beyoncé, Lil Nas X, Adele, Taylor Switft, Timbaland, Jennifer Lopez, James Blunt, Maroon 5, Backstreet Boys, Jonas Brothers, One Direction, Paul McCartney e U2, composições para Beyoncé (inclusive “Halo”, de 2008), Lady Gaga, Camila Cabello, Miley Cyrus, Ariana Grande, Justin Bieber, Lil Nas X, Ed Sheeran, Shawn Mendes, Jennifer Lopez, Christina Aguilera, Gwen Stefani, Demi Lovato, Macy Gray, Chris Cornell, Foster the People e t.A.T.u., parcerias com Adele, Taylor Swift, Paul McCartney, Timbaland, Maroon 5, Ryan Adams, The Killers, o DJ de trance Paul Oakenfold…
O hit “Envolver” e o álbum Versions of Me posicionam Anitta na prateleira que os Estados Unidos chamam genericamente de “latina”, na qual não se vê a olho nu quem é mexicano, cubano, jamaicano, panamenho, venezuelano, chileno, argentino, eventualmente brasileiro. Não chega a ser muito diferente do tempo em que o presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan (1981-1989), em visita a Brasília, pensou que estava na Bolívia, enquanto sua assessoria classificava a colombiana Bogotá como capital do Brasil.
Dos 22 produtores envolvidos em Versions of Me, apenas dois são brasileiros: Papatinho, em “Que Rabão”, e Dennis DJ, em “Gata”. As proporções se repetem nas composições: Anitta aparece como autora em 12 das 15 faixas, mas divide a função com nada menos que outros 62 compositores, espalhados entre porto-riquenhos, jamaicanos, colombianos, trindadenses, dominicanos, alemães, suecos, escoceses, holandeses, ingleses, estadunidenses… Só seis dos 62 são brasileiros: os funkeiros Mr. Catra, Kevin o Chris, Papatinho e MC Copinho (de Petrópolis), em “Que Rabão”, e Rafa Dias e Wallace Chibatinha, da banda baiana de pagodão eletrônico Àttøøxxá, em “Me Gusta”. Haveria dois outros parceiros made in Brazil, dois cariocas chamados Tom Jobim e Vinicius de Moraes, mas suas assinaturas só aparecem por conta do sampler e da melodia de “Garota de Ipanema” (1962) em “Girl from Rio”.
A linha de montagem serial que se tornou a música pop ajuda a justificar semelhanças (ou plágios) que já foram apontadas em “Envolver” (parecida com um remix de “Caramelo“, com os rappers porto-riquenhos Ozuna e Myke Towers e a cantora colombiana Karol G) e nas mal lançadas “Versions of Me” (parecida com “Teenage Dream”, de Katy Perry) e “Love You” (prima de “Bad Liar“, com Selena Gomez). Na verdade, a semelhança entre “Love You” e “Bad Liar” tem origem bem anterior: as introduções de ambas lembram a de “Psycho Killer” (1977), dos Talking Heads. Novas semelhanças podem ser reconhecidas a qualquer momento, já que a fábrica de sabonetes musicais despeja produtos montados a partir de muitos “pieces of me”, como cantaria Britney Spears.
A fórmula (teórica) para o sucesso confere uniformidade a Versions of Me, mas a diversidade de produtores, autores e convidados musicais se reflete também nas canções. “Gata” é um reggaeton vibrante com participação especial de Chencho Corleone, do duo porto-riquenho de reggaeton Plan B. “Gimme Your Number” traz o rapper californiano Ty Dolla $ign adaptando para o inglês o clássico pop “latino” “La Bamba“, disseminado pelo mundo a partir de 1958 na voz do estadunidense filho de mexicanos Ritchie Valens, um pioneiro do rock e do que se rotulou nos Estados Unidos como “rock chicano”, em expressão inegavelmente pejorativa e preconceituosa. Na voz do rapper, o verso “para bailar la bamba” é o único que permanece na língua original no refrão de “Gimme Your Number”, de resto uma conversa sexual por telefone, na qual Anitta demarca (em inglês): “Meu corpo é meu idioma/ preciso te explicar em espanhol?”.
Em “Maria Elegante“, em inglês com refrão espanhol, o convidado é o DJ inglês afrodescendente Afro B, que canta nas duas línguas. Autor e cantor do hit “Drogba (Joanna)“, Afro B diz misturar em sua música hip-hop afro-americano, dancehall jamaicano e afrobeat africano. Khalid, cantor afro-norte-americano de rhythm’n’blues, cuida do duo de “Ur Baby“, uma das poucas faixas semi-românticas do álbum (o romantismo puro, lamurioso e sofredor não existe para Anitta).
A lista de participações se completa com as já conhecidas “Me Gusta” e “Faking Love”, lançadas, respectivamente, em setembro e outubro do ano passado. Com videoclipe gravado em Salvador, “Me Gusta” traz a sonoridade pagofunk contagiante à moda do Àttøøxxá e as participações rappers do porto-riquenho Myke Towers e da nova-iorquina Cardi B, uma fã notória de música brasileira. “Faking Love”, segundo Anitta um funk melody, é dividido com a colega na Warner Saweetie, rapper californiana de descendência africana, filipina e chinesa – Anitta tem declarado publicamente que odeia o resultado do clipe de “Faking Love“.
Bastante genéricos, os temas das letras de Versions of Me giram em torno dos prazeres de dançar (“Gata”, “Maria Elegante”, “Gimme Your Number”), rebolar (“Que Rabão”, “Me Gusta”), expor-se ao sol (a sambossa eletrônica “Turn It Up“, “Girl from Rio”), fazer sexo (“Envolver”, “Gata”, “I’d Rather Have Sex”, “Me Gusta”) e, com convicção bem menor, amar (“Love You”, a balada de encerramento “Love Me, Love Me“).
O empoderamento feminista reluz no pós-romantismo de Anitta, nas diversas canções que incluem homens como objetos sexuais e sem protagonismo. A separação emocional em relação a eles aparece a todo momento: “Faz tempo que quero te comer/ (…) não duro muito solteira/ me aproveita/ sou um caso a resolver/ mas não vou te envolver”, em “Envolver”, que portanto é sobre não se envolver; “você não vai admitir, mas é por isso que te afasto de mim/ tenta me domar/ mas ninguém me controla/ (…) quem disse que garotos não choram?”, da pop-rock “Boys Don’t Cry”; “não me importo se você gosta ou não/ estou na sua mente e você está preso no meu drama” (da faixa-titulo apontada para as pistas); ou na letra inteira de “Faking Love”, funk de amor fingido para tempos governados por fake news. “Ficar a noite inteira discutindo, não/ eu prefiro fazer sexo/ você não?”, canta “I’d Rather Have Sex“, sintética e discípula de Madonna em vários sentidos.
Uma das missões de Versions of Me era dispersar a impressão deixada por Kisses, de que Anitta não se adapta bem ao formato álbum. O novo trabalho é mais coeso, mas não desata o nó de que Anitta tem mais habilidade em empilhar clipes e singles avulsos do que conceitos. Por sinal, cinco faixas do álbum saíram primeiro nesse formato, inclusive, além das já citadas, o divertido “Boys Don’t Cry“, em trânsito entre o “Footloose” dos anos 1980 e a Dua Lipa de “Don’t Start Now”. Na fábrica de carne moída do pop, o conceito ainda é um calcanhar de Aquiles de Anitta, e sobre isso é preciso voltar para onde tudo começou, em “Girl from Rio”, faixa-elo com a Anitta brasileira, que foi o primeiro single/clipe da fase atual, lançado em abril de 2021.
O semi-afastamento entre Anitta e o Brasil reproduz uma velha história, e ela contou essa história na letra e no clipe de “Girl from Rio“. A bossa-rap começa com sample de “Garota de Ipanema”, na versão gravada por Tom Jobim em 1970, sobre imagens de um Rio de Janeiro antigo que evoca ao mesmo tempo a bossa nova, o samba-canção e, antes ainda, os balangandãs da carioca nascida em Portugal Carmen Miranda. “Garotas quentes do lugar de onde vim, nós não parecemos modelos/ silhuetas bronzeadas, grandes curvas e a energia arde, você vai se apaixonar pela garota do Rio”, ela canta, em inglês, usando em parte a melodia de “Garota de Ipanema” (ou “The Girl from Ipanema”, como o jazz a tornou conhecida no planeta todo). Com voz de bossa nova, Anitta usa roupas antiquadas/comportadas à frente do cartão postal da praia de Copacabana para o mundo.
De repente, o fundo se revela um cenário, a bossa vira rap e por trás das maquetes um ônibus faz parada no popular Piscinão de Ramos, para desembarcar uma Anitta suburbana e uma outra história: “Deixa eu te contar sobre um Rio diferente/ o de onde eu vim, mas não o que você conhece”. À maneira do funk-manifesto “Vai Malandra” (2017), as imagens agora dão conta de uma praia povoada por mulheres (e homens) de diversas cores, formatos e origens, mais para garotas de Honório Gurgel do que de Ipanema. “Honório Gurgel forever”, ela finca a bandeira, enquanto lamenta as crianças que dão crianças à luz e com quem ninguém se importa. “As ruas me criaram, eu sou favela”, arremata a garota do Rio.
A história contada aqui é a repetição de um círculo vicioso que o Brasil, nascido de um estupro, vive talvez há 522 anos. Astuciosa, Anitta cita, na letra, um irmão recém-descoberto, que tem o mesmo pai, mas outra mãe. A cena, aparentemente deslocada, remete à miscigenação no modelo casa grande & senzala do Brasil, mas também ao velho crítico musical José Ramos Tinhorão, que se referiu à bossa nova como “filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana – que é, inegavelmente, sua mãe”. Bambo entre o confronto social e o preconceito, Tinhorão escreveu, em Os Pais da Bossa Nova (1963): “A bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai”.
É uma panela que fez borbulhar ódio todas as vezes que foi destampada, e é isto que Anitta tenta dizer em “Girl from Rio”: de Carmen Miranda à bossa nova, passando depois pela tropicália por intermédio de Tom Zé, pelas levadas da lambada e da axé music e pelo “Ai se Eu Te Pego” (2011) do paranaense/sul-matogrossense Michel Teló, há um Brasil que se assusta ao se olhar no espelho de qualquer música brasileira de sucesso no exterior e grita, furibundo: “Nós não somos nada disso!”. Descem pela mesma canaleta os balangandãs de Carmen, o samba-jazz de Jobim e João Gilberto, as piruetas de Tom Zé, as timbaladas de Carlinhos Brown, a sanfona interiorana de Teló, a bunda, o cio e a afronta de classe social de Anitta. Mais incisiva e incendiária que os antecessores, Anitta explode sem piedade os bunkers de “bom gosto” que historicamente pintam imagens maquiadas pelas classes média e alta supostamente europeizadas do Brasil.
Carmen Miranda fez sucesso como atriz na Hollywood dos anos 1940 e 1950, mas interpretando personagens “latinas” genéricas que, tanto fazia, podiam ser cubanas, mexicanas ou brasileiras – e invariavelmente eram subalternas dos protagonistas nortistas. Anitta superou barreiras e bloqueios e escalou o Spotify e a Billboard interpretando musicalmente uma garota autônoma, empoderada, feminista e sexualizada, que tem orgulho de explicar para o mundo a favela onde nasceu. Enquadrada na gaveta “latina”, precisou deixar pendurado o conceito (brasileiro, mas também pan-americano) que “Girl from Rio” prometia e Versions of Me não chega a cumprir. Sabemos que a garota do Rio ainda está longe de ser uma estrela global (continuamos subalternos aos olhos dos dominadores e, principalmente, aos nossos próprios), mas Anitta é tenaz e não seria totalmente surpreendente se conseguisse, daqui a algum tempo, tomar de volta as próprias rédeas.
Versions of Me. De Anitta. Warner Records/Warner Music Brasil.