O poeta preso
Thiago de Mello na Praça da Polícia, em Manaus, no final dos anos 90 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Nos dois anos seguintes à gravação da canção de Nara Leão, houve um recrudescimento da repressão e da violência no País que culminou com a decretação do AI-5. O poeta foi preso naquele ano e conta que entrou na prisão temeroso por seu destino. Encontrou, então, na parede da pequena cela, seus próprios versos rabiscados por algum preso que o precedeu: “Faz escuro mas eu canto / porque a manhã vai chegar”. Depois, com o golpe militar no Chile, em 1973, pediu asilo às Nações Unidas e tornou-se um refugiado político, sendo abrigado na pequena cidade alemã de Mainz, perto de Frankfurt.
Nos anos 1970, num encontro de escritores latino-americanos em Frankfurt, os posicionamentos políticos de Thiago, do uruguaio Eduardo Galeano e do argentino Julio Cortázar foram confrontados com os do peruano Mario Vargas Llosa e do chileno José Donoso, entre outros. Estes últimos defendiam que o compromisso da literatura era somente consigo mesma, não tinha responsabilidade social. Thiago discordou, como ainda discorda, veementemente. “O verdadeiro compromisso do escritor é com a vida e o homem do seu tempo. Com a realidade histórica e cultural do seu País. Com a eliminação da injustiça. Com a palavra, sim, que é o seu instrumento. Mas palavra que seja canto e caminho, espada e testemunho”. O poeta amazonense acabou tratando desse embate em um livro publicado em 1975 pela editora Civilização Brasileira: “Poesia comprometida com a minha e a tua vida”.
Por conta dessa determinação do escritor, não tardou a chegar o dia em que soldados a serviço de um governo autoritário entraram em sua casa e lhe apontaram uma arma para a cabeça. “Mata aqui mesmo?”, perguntou um militar ao seu superior. “Fugaz e infinito. Esperei a bala, confiante de que eu estava do lado bom, do lado certo: o lado do amor”, ele contou, sobre aquele episódio.
Assim, não é absolutamente surpreendente que, no Brasil de 2021, da pandemia e do milicianismo de Estado, “Faz escuro mas eu canto” esteja se tornando uma nova expansão daquele insight inicial de Thiago de Mello, hoje com 95 anos, consagrado como um dos autores mais importantes do País, há 13 anos vivendo no centro de Manaus, duelando com os sintomas do Alzheimer, mas com sua presença referencial garantida no País que tanto ama.
Quando a arte consegue tocar o coração de leitores de diferentes épocas e localidades, como os versos de Thiago de Mello, é porque a voz do autor deixou de ser apenas uma voz pessoal para expressar um sentimento de toda a humanidade. “Então, não é de se espantar de que tenha algo de profético em seus versos, assim como na literatura oral dos povos indígenas que preservam o dom da sensibilidade e da reverência respeitosa com a natureza, dons infelizmente atrofiados na mentalidade do homem ocidental pelos vícios da ‘civilização’”, diz a autora Pollyanna Furtado, companheira do poeta.
O famoso poema do autor amazonense que faz a amarração formal da monumental exposição em São Paulo, nesse instante, surgiu, segundo ele mesmo afirmou nos anos 1970, como a expressão de uma busca em tornar sua poesia mais acessível, porém sem perder a qualidade poética. Livrá-la do hermetismo, como explicou, sendo essa uma das lições que aprendeu com o amigo chileno Pablo Neruda.
A amizade com Neruda
Em foto de 1962 com o poeta chileno Pablo Neruda (Acervo Jornal do Brasil)
Na única pergunta que logrou responder a um questionário que esta reportagem da Amazônia Real lhe enviou, há uma semana, Thiago de Mello respondeu justamente sobre a amizade com o poeta chileno: “Pablo Neruda, o mais importante poeta do Chile, leu poemas meus no jornal Correio da Manhã. O que mais me chamava a atenção era o seu respeito e interesse pelos poetas moços que encontrava na América do Sul. Quando ele leu meus poemas, recebi uma carta dele”, contou, sobre o início de sua amizade.
“Tive a alegria de partilhar inumeráveis momentos da vida de Pablo Neruda”, contou certa vez, lembrando que chegou a viver na célebre casa do Cerro San Cristóbal, em Santiago, uma residência que Neruda lhe cedeu para morar. “Reúno todos esses numerosíssimos momentos, nos quais conversávamos, recitávamos, ríamos, bebíamos e comíamos, inventávamos festas e amanhecíamos nos mercados – a todos reúno como desses instantes inesquecíveis da minha vida, conquanto nem todos guardem o gosto da alegria.”
Apesar da progressiva alienação que a doença lhe trouxe, a pandemia não passou despercebida pelo poeta, que a tem como um “aprendizado amargo”, embora de um saber há muito conhecido pela humanidade. A visão de Thiago é a de que estamos todos conectados, e somente a construção de uma sociedade mais humana, justa e solidária, capaz de contemplar essa interconectividade entre os povos, trará a redenção da Humanidade. A compreensão da existência, segundo o poeta, é a de que toda vida, mesmo a de um de um ser humano que vive do outro lado do oceano, nos diz respeito, e a pandemia veio para fazer as pessoas rememorarem essa dura lição.
“…O que passou não conta?, indagarão/ as bocas desprovidas. / Não deixa de valer nunca./ O que passou nos ensina /com sua garra e seu mel”, diz o verso de “A Vida Verdadeira”, de Thiago, poema que trata da prevalência das raízes culturais e da origem amazonense em tudo que o artista tem produzido, pensado e acalentado ao longo da vida. “Thiago é a síntese de tudo que viveu, dos lugares por onde passou, das pessoas por quem se encantou, das dores por que passou”, diz Pollyanna Furtado Lima, mulher do poeta. “Da infância humilde de menino do Amazonas às margens do rio, no coração da Floresta Amazônica à de sua juventude altaneira nas ruas de Manaus”, afirma.
Uma potência de vida
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Evidentemente, a compreensão do mundo, na obra de Thiago, também abrange sua trajetória formativa pelo mundo, pelo debate acadêmico e político, pelas amizades duradouras, pela maturidade. De sua formação acadêmica na Faculdade de Medicina e Filosofia do Rio de Janeiro (1942) a passagens pela Bolívia (1958), Chile (1959, como adido cultural); do exílio político na Alemanha (1974) à experiência em França e Portugal (1975); à vida no seu berço amazônico original na Freguesia do Andirá ou Barreirinha (na famosa casa projetada por Lúcio Costa), com os colegas poetas no Clube da Madrugada, na Zona Franca de Manaus. Tudo no fio biográfico de Thiago de Mello converge para uma única visão do mundo: a da emancipação plena do homem, como ele cantou num dos seus poemas mais festejados, “Os Estatutos do Homem”, dedicados a Carlos Heitor Cony:
“Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem”
Painel com o verso de Thiago de Mello na entrada do Pavilhão Matarazzo na 34ª Bienal de São Paulo (Foto: Amazônia Real)
A curadoria da 34ª Bienal de São Paulo apontou a existência de um outro poema célebre, de Bertolt Brecht, de tema análogo ao verso de “Madrugada Camponesa” que emprestou pulsão à mostra do Ibirapuera. O verso de Brecht diz: “In the dark times / Will there also be singing? / Yes, there will also be singing. / About the dark times.” (“Nos tempos sombrios / Haverá cantoria? / Sim, haverá cantoria. / Sobre os tempos sombrios.”).
“É similar, mas não é a mesma coisa. Com Thiago de Mello, é de se imaginar que se cantará sobre os tempos sombrios, mas não apenas sobre eles. Isso é importante. Especialmente aqueles que se encontram mais ameaçados, sob a mira de projetos que desejam sua extinção, sabem bem que nesse contexto todo canto é por si mesmo uma potência de vida e, como tal, desafia o desejo de morte”, diz texto da curadoria.
Os curadores da grande mostra pensaram em muitos motes e temas para a conceituação dessa mostra antes de decidirem-se pelo verso de Thiago de Mello há dois anos. Chegaram a pensar em “Luzia”, referência à descoberta arqueológica do Museu Nacional do Rio, o crânio de uma mulher que viveu há mais de 11 mil anos (o fóssil mais antigo das Américas, destruído por um incêndio em 2018). “Decidimos chamá-la ‘Faz escuro mas eu canto’. Porque estamos em tempos escuros. E o escuro em que estamos é feito. Porque queremos olhar para esse escuro, olhar nesse escuro”, escreveram os curadores em um manifesto da exposição.
Thiago de Mello na Ponta da Gaivota, em Freguesia do Andirá
(Foto cedida por Pollyanna Furtado)