O chiclete de Nina Simone

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No dia 1º de julho de 1999, a cantora norte-americana Nina Simone (1933-2003) terminou seu concerto em um evento no London Festival Hall e, antes de se levantar do piano, enxugou a testa com uma toalhinha, tirou o chiclete que mascava e o colou debaixo do instrumento, jogando em seguida a toalha molhada de suor no teclado. Quando já tinha se retirado, o multiinstrumentista e compositor australiano Warren Ellis (que participava do festival Meltdown como integrante da banda The Bad Seeds, do organizador Nick Cave), subiu ao palco, recolheu a toalha e o chiclete e levou embora consigo.

Entre 1999 e 2004, Ellis abria eventualmente a toalhinha para dar uma conferida no chiclete, como se olhasse um fragmento de um meteorito incandescente. Nina Simone morreu em 2003, em Carry-la-Rouet, na França, de câncer de mama. Entre 2005 e 2013, o violinista não abriu mais o embrulho, que manteve como um objeto sagrado todos esses anos. Até que, no dia 10 de setembro de 2013, quando ele rodava com seu parceiro, o cantor e compositor Nick Cave, um documentário sobre a vida do conterrâneo, ele resolveu contar seu segredo a Nick. “Caramba! Merda, que inveja!”, reagiu o amigo.

“Era a primeira vez que falava em público do chiclete e, por estranho que pareça, me deu a sensação de que, naquele momento, se convertia em algo real. Tivera essa sensação por um momento em estúdio, trabalhando a música, naquele instante em que as ideias criam vida, encontram sentido mais à frente de quem as cria. Ao ver as ideias chegarem às pessoas e encontrarem uma nova vida, perder parte do controle uma vez que as tornamos públicas”, escreveu Warren Ellis num dos livros mais inusitados da cultura pop recente, Nina Simone’s Gum – A memoir of things lost and found (da Faber & Faber, e que está sendo lançado em castelhano pela Alpha Decay esses dias como El chicle de Nina Simone).

Para Warren Ellis, o chiclete significava algo monumental, “minha conexão com uma mulher tocada pela mão de Deus”, ao mesmo tempo em que sua existência efêmera não lhe garantia um lugar de fato no mundo real, “uma espécie de gato de Schrödinger”. Ao resolver escrever um livro sobre a experiência como guardião de uma bola de chiclete mascada, Warren Ellis acabou encontrando uma forma de descrever sua própria estupefação face à arte e à biografia de Nina Simone, e o livro converteu-se em um pequeno tesouro da cultura pop moderna.

“Pensei na quantidade de segredinhos que há no universo esperando serem revelados. Quanta gente tem lugares ocultos com sonhos abandonados cheios de fantasias”, escreveu Warren. Com um impulso quase jornalístico, em alguns momentos, o violinista escarafuncha 20 anos depois as circunstâncias do show de 1999, reencontrando personagens dos bastidores. Um dos mais interessantes é o engenheiro de som Matt Crosbie.

Matt Crosbie cuidava então do som dos shows dos Bad Seeds, da banda Dirty Three (de Warren Ellis) e também do da cantora Cat Power. Nina Simone, diva temperamental, atravessava um período em que se tratava de uma funda depressão. Todos temiam a sentença da artista quando tocasse o piano na sala vazia. Mas eis que Nina Simone perguntou: “Quem está fazendo a prova do som? Nunca ouvi um piano soar tão bem”. Matt se adiantou, apresentou-se e recebeu as bênçãos da diva. “Soa do cacete esse piano!”, ela elogiou.

Nina Simone então passou a dar instruções diretamente a Matt Crosbie. “A percussão tem que estar mais alta e preciso de algo de guitarra. Minha voz tem que soar bem alta. Quero que soe nítida, Matt”. Nina passou o som sozinha e depois deixou que a banda fizesse sua parte também sozinha. Matt notou que havia um amplificador para o baixo, mas não havia ninguém usando, e perguntou à cantora se havia baixista.

“Não, Matt. Larguei esse filho da puta no aeroporto do voo em Paris. Farei as oitavas graves com a (mão) esquerda”. Após a passagem de som, Matt contou a Ellis que foi tomar umas Guinness no balcão do bar do Festival Hall e voltava para os camarins quando passou pelo de Nina Simone, ao qual não era permitida a entrada de ninguém. Todos tinham medo dela. Mas Matt tinha sido incumbido de inquirir a cantora sobre necessidades e ele bateu na porta. Ela o convidou para entrar. “Que foi, Matt?”, perguntou. “Doutora Simone, precisa de algo mais? Quer que eu lhe traga algo?”. E Nina: “Bem, Matt, você pode me trazer champanhe, cocaína e salsichas?”. Ele respondeu que não dava para trazer tudo que ela pedia, mas perguntou que tipo de salsicha queria. “Eu que sei? Traz salsicha e pronto”. Matt então foi em busca do que ela tinha pedido, voltando com uma garrafa de Moët & Chandon que comprou no bar, um sortido de salsichas e um grama de coca.

Dessa forma, a narrativa de Warren Ellis sobre a saga do chiclete (do qual uma seguradora australiana chegou a fazer uma apólice de seguro de US$ 1 mil) vai sendo encorpada por incursões no universo de extravagâncias, genialidades e sensibilidade de Nina Simone, ao mesmo tempo que uma digressão sobre a natureza dos apegos humanos. É um livro sobre “arte, música e obsessão”, segundo declarou o escritor e roteirista Neil Gaiman. “Há um pensamento muito bonito que me acompanha, que a enorme história desse chiclete seja algo que tenha impactado pessoas de forma completa. Sua empatia. Levam dentro de si, surge do rincão mais puro. A imaginação. O divino. O coração humano. Tudo e nada”.

Nick Cave fez questão que Warren Ellis falasse sobre o chiclete para o documentário e o colocasse depois como parte integrante da exposição Stranger than Kindness, que estava montando na Austrália. “É essencial, Was!”, argumentou, enquanto tomavam um chá Lady Grey no estúdio Retreat de Ovingdean, uma vila em Brighton, Inglaterra, quando trabalhavam juntos na trilha sonora do documentário. Para proteger o transporte do chiclete mascado, que 20 anos depois ainda guardava as marcas dos dentes de Nina Simone, foram colocadas “courriers” especiais para transportá-lo escondido dentro de um violino de de um País a outro, como se fosse um Van Gogh autêntico.

Para Warren Ellis, segundo descreve no livro, a mágica de tudo se revelava mais adiante do nonsense do seu objeto precioso. Ele lembrou que, assim como o chiclete, seu primeiro instrumento musical, o acordeão, também tinha sido encontrado no lixo quando ele tinha 7 anos de idade. Recordou-se de uma vez em que a caixa de violino (na qual agora o chiclete era transportado) tinha se perdido e ele imaginara durante anos que tinha ido parar no lixo. Do chiclete viestes, pelo chiclete ascenderás!

 

El chicle de Nina Simone. De Warren Ellis. Prólogo de Nick Cave. Alpha Decay, 22 euros. Tradução para o espanhol de Núria Molines
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