Conceição dos Bugres arromba calabouços da “arte popular”

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É curioso perceber que a pequena mostra da escultora Conceição dos Bugres esteja instalada bem ao lado da megaexposição do barroco fashion de Beatriz Milhazes, a segunda em três pisos do Masp e a primeira numa modesta lateral do primeiro andar do museu. É possível olhar para uma e outra ao mesmo tempo. Embora por puro acaso, funciona como se fosse dada ao espectador a possibilidade de examinar aspectos de significado, de inserção social, de envolvimento entre os artistas e sua arte, entre outros.

Povinho de Santiago, a cidade de onde veio Conceição Freitas da Silva (1914-1984), a Conceição dos Bugres, no Rio Grande do Sul, não existe mais, não é mais localizável no mapa. Simbolicamente, também sua obra não é localizável nos mapas da valoração da arte, e quando o é encontramos as descrições de “ingênua”, “naif”, “brutalista”, entre outras. A exposição de 199 peças da artista, pelo Masp, na exposição Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo, permite justamente examinar a consistência desses conceitos.  

Arte popular o que é? Uma arte sem erudição, desprovida de perspectiva histórica? Uma arte menor, tolerada pelo sistema artístico quando satisfaz suas aproximações de gosto? Semi-analfabeta, Conceição dos Bugres parece colocar em xeque os cânones. Suas peças monolíticas, feitas em um sistema de aparente repetição mecânica (os chamados “bugres”), são trabalhos geralmente em madeira cobertos por cera amarela de abelha ou parafina e tinta (eventualmente, em pedra sabão e arenito). Consta que ela fez o primeiro em um gomo de cana-de-açúcar, quando trabalhava na roça com o marido. Entre 1960 e 1984, produziu compulsivamente.  

Esculpidas de forma incansável em monolitos de madeira, suas figuras parecem totens similares àquelas estátuas da Ilha de Páscoa, ou carrancas do Rio São Francisco sem a memória do São Francisco, ou imagens sacras que não se lembram da Igreja. Entretanto, a arte de Conceição nunca alimenta ambições de sagrado. Ela esculpe personagens do cotidiano, do povo, que não parecem reivindicar elevação. É um olhar sobre a sociedade e sua condição essencial. Há grupos de esculturas que são cidadãos pretos, e somente raros trabalhos têm os membros superiores, braços e mãos, destacados do corpo, em movimentos de súplicas. 

Vistas pela primeira vez em seu conjunto, as 119 peças parecem ter sido feitas para funcionarem juntas, como os Guerreiros de Xian de terracota chinesa. Assim se percebe com clareza o balé de miragens que habitava os talhos de Conceição, acionado por mudanças muito sutis em buracos de olhos, cortes de cabelo, inclinação dos corpos, esgares de bocas e desníveis de crânios. A curadoria é de Amanda Carneiro, curadora assistente no Masp, e Fernando Oliva, também curador da instituição. Eles parecem ter montado a mostra de forma a questionar suas próprias ferramentas sedimentadas de crítica de arte.

Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo. Masp (Avenida Paulista, 1578). De terça (gratuito) a domingo. Agendamento obrigatório em masp.org.br/ingressos. 45 reais.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Conceição dos Bugres nunca será achada no Rio Grande do Sul, mesmo que sua cidade ainda estivesse pulsando. Simplesmente porque não foi ali que ela tornou-se a escultora que é, mas na fronteira de Mato Grosso do Sul, este Estado que insistem em deixar na invisibilidade cultural e que só é alardeado nas editorias policiais. No post do Masp sobre a exposição, não existe citação de onde afinal nasceram os Bugres da Conceição e só poderia ser neste Brasil bruto, de dentro, fronteiriço, paraguaio, guarani e longe demais do Atlântico. Os bugrinhos de Conceição são fruto da mistura única de Mato Grosso do Sul e enquanto não localizarem isso, jamais irão explicar ou entender a obra de Dona Conceição.

  2. Bacana, Rodrigo, que você veio aqui salientar a importância do Mato Grosso do Sul na concepção artística da Conceição. Está corretíssimo. Mas não viaja: o texto acima não é um verbete biográfico, é uma resenha publicada no espaço limitado de uma revista de papel e republicada aqui. E que teve o desafio de realçar a originalidade e ressaltar a especificidade do trabalho da artista com alguma ambição de timing e ritmo. Não usemos sempre esse tom de animosidade nos esforços de compreensão das grandezas do Brasil, é desnecessário. E não houve o mais remoto impulso de supremacia geográfica porque, além de tudo, nasci no sertão do Cariri e cresci nas matas do Paraná. Somos todos Conceição.

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