Há 10 anos, morria o poeta paulistano Roberto Piva.
Tenho Piva na mesma consideração que tenho Walt Whitman.
Evidentemente, não foi sempre assim. Fui despertado para a literatura de Piva quando ele já era calejado. Quando li Paranoia, custei a crer que tinha sido escrito em 1963, quando o poeta tinha apenas 26 anos. Tenho duas ou três edições diferentes de Paranoia, e muitas vezes eu o leio de trás para frente, como que apostando na iluminação da contramão.
O poeta Ademir Assunção nos apresentou. Piva sofria de Parkinson e gostava demais da natureza. Mas, por vezes, ficava confinado no seu apartamento em Santa Cecília. Um dia, combinamos de levá-lo para almoçar em Piedade, o Ademir e eu, e assim foi. No caminho, Piva falava de um vinho chileno que possuía mais flavonóides e polifenóis e coisas do tipo que outras variedades, e de como esse vinho e sua capacidade antioxidativa era propício para amenizar efeitos do Parkinson. Ele nos avisou que só beberia algo alcoólico se fosse aquele tipo de vinho. E o restaurante ao qual fomos tinha um vinho daqueles e tomamos duas garrafas. Ele ficou muito feliz. Na volta, paramos brevemente na minha chácara de Ibiúna para ele conhecer. O poeta se desgarrou da gente, deitou no chão do campinho de futebol e ficou um tempão observando um gavião mateiro que sobrevoava em busca de algum roedor. No xamanismo, o gavião é símbolo da liberdade.
Isso foi provavelmente em 2007, 2008, porque logo depois daquele almoço o Piva lançou um volume de inéditos, Estranhos Sinais de Saturno (Editora Globo) no qual ele dedicava um poema para o Ademir e eu. O poema chama Aos grandes transparentes (“no dilúvio de girassóis revolucionários & seus relâmpagos”).
Nos lançamentos de seus livros, Piva levava pequenos carimbos com figuras mitológicas. Carimbava e fazia um rabisco em cima. Estive em seus lançamentos e suas palestras, o sarcasmo dele era um sonho da imaginação duelista. Provocava e insurgia-se contra tudo que fosse totem ou tabu.
Em março do ano em que ele morreu, 2010, ele passou por maus bocados e os poetas brasileiros fizeram um sarau para levantar fundos para sua internação na Santa Casa de Misericórdia. Fui lá cobrir.
Quando Piva morreu, escrevi sobre isso também, por dolorosa contingência profissional.
Paranoia, com as fotografias de Wesley Duke Lee, é o livro que mais amo em minha biblioteca (gosto demais da reedição do Instituto Moreira Salles, de 2009, com prefácio de Davi Arrigucci). Os versos têm uma musicalidade inescapável, um tipo de solo de blues de Elmore James ou Howlin’ Wolf. Alguns eu declamo involuntariamente quando estou saindo dos metrôs de São Paulo: “Praça da República dos meus sonhos/Onde tudo se faz febre e pombas crucificadas!”. Um dos poemas, Paranoia em Astrakan, principia sobre as fundações de Whitman (“Certa vez passei por uma cidade populosa”), mas logo cai numa festa pagã de cemitérios incendiados.
Já escrevi muita coisa cartesiana e pretensamente elucidativa sobre a poesia de Roberto Piva, sobre a qualidade que possui de emoldurar o nascimento da metrópole e de suas contradições, sua paisagem de morfina dolorosamente aconchegante. Evidentemente, há muito visionarismo e profecia. Mas o fato é que ela possui também uma substância deflagradora, uma amanita matutina qualquer, algo que aparta a carne da razão, aciona uma rebelião na mente de quem a percebe.
Selecionei um poema menos citado do livro para lembrar sua atualidade gritante:
Jotabê, que delicia de texto.
Sou muto fã do Piva. O conheci na leitura do Uivo pelo Claudio Willer no Madame Satã e tenho esse mesmo livro do IMS.
Tenho feito um podcast chamado Peixe Voador e num dos primeiros episódios falei dele e li um de seus poemas, o que fala de Mario de Andrade no Ibiraquera.
um prazer te ler.
obrigada,
beijos
Patricia