A comoção em torno da morte do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado tem sido imensa, até desmesurada em alguns veículos de comunicação (com repórteres de TV emocionados reportando em espasmos vocais o heroísmo do personagem que nunca conheceram de verdade). Mas, de forma geral, é uma comoção plenamente justificada – e parece conter um terrificante componente adicional. É que, nos dias atuais, quando morre um Sebastião Salgado, é forçoso reconhecer que o nosso pranto parece que é um pouco o pranto que derramamos por nós mesmos, pela consciência progressiva de que sua desaparição encerra um período luminoso do humanismo; o sumiço de tal capacidade de excelência é também um prenúncio de nossa iminente extinção.
Sebastião Salgado fotografou um País em gestação, as atribulações humanas decorrentes dessa corrida desenfreada e sem projeto rumo ao futuro: a estupefação das crianças nascidas no abandono, o balé dos corpos humanos em busca da fortuna na lama, as foices da resistência sem terra, a integralidade indígena em meio ao esfarelar do território. E ele fez isso apenas com uma câmera, o arquétipo perfeito do artista presumivelmente sozinho e resoluto (“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”), cujas visão e tenacidade seriam capazes de mudar o mundo. Essa disposição do artista como artífice de uma consciência revolucionária (capaz de produzir impacto social com sua arte) tem jeito de caminhar celeremente para a obsolescência.
A questão é que não parece haver mais um ambiente de criação artística (e recepção pública) para abrigar articuladores do quilate de Salgado. Como não se vê mais um ambiente cinematográfico propício ao surgimento de um novo David Lynch ou um novo Cacá Diegues. Não há mais clima para a saga de legitimação geracional de uma Heloísa Teixeira, o antigo underground foi engolido pela sanha mercantilista da rede social. Vejam bem: não é que eu esteja dizendo que eles não existam, ou que não possam surgir – muito pelo contrário. Não cometeria tamanha burrice. Mas estão sitiados. O algoritmo da música, por exemplo, não suportará a presença de um novo Quincy Jones (quando é muito mais conveniente esquartejá-lo em combinações matemáticas infinitas).
Em um cenário artístico que se empenha em atender rapidamente a demandas (tecnologicamente diagnosticadas), e não às inquietações do artista, ao tempo da arte, e que se gaba de conseguir um engajamento nunca igualado em velocidade jamais experimentada, as despedidas têm sido decretadas silenciosamente. Ficamos sabendo dos artistas quando eles somem. Ao apagamento da condição existencial do artista, sucede-se uma feérica nova valorização da persona do artista (e da habilidade física em entreter continuamente no vídeo). Vive-se a abolição da memória pessoal, ela agora é commodity. O tempo da reflexão tem sido ultrapassado pelo tempo da rolagem do feed, o tempo da emoção e da indignação está concentrado na permanência nas stories.
Não é um tipo de debate fulcrado na autocomiseração que estou propondo aqui, nem um manifesto anti tecnológico. Nem é nostalgia. É apenas a expressão de uma angústia. Sempre me ocorre um texto que Gore Vidal escreveu em setembro de 1985 durante o funeral de Italo Calvino, em Castiglione della Pescaia, na Itália. “Acordei com trovões e relâmpagos, e achei que estava, mais uma vez, na Segunda Guerra Mundial”, escreveu Vidal, antes de produzir um portentoso ensaio sobre a desaparição de um artista singular. Acordamos com trovões e relâmpagos e, mais uma vez, estamos no meio do nada.