Nosso Noel Rosa não é erudito, é bagaceiro

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Em cartaz nos cinemas desde esta quinta-feira, 24, o documentário Um Espírito Circulante parte do particular para chegar ao que é um universal brasileiro (sic) há quase um século: a música, a poesia, a arte, a perícia e o engenho de Noel Rosa (1910-1937), que nasceu e criou uma obra de vulto a partir do bairro de Vila Isabel, na zona norte do Rio de Janeiro, em meros e velozes 26 anos de idade. O primeiro e maior distintivo do filme dirigido por Joana Nin é exatamente a opção de erguer um documento geolocalizado, que faz da Vila Isabel ponto de partida e referência para contar um pouco do que significou Noel Rosa para a Vila, o Rio de Janeiro e o Brasil.

Noel Rosa (1910-1937)

O recurso adotado é o de contrastar a Vila Isabel dos dias atuais com a de sambas tão longínquos e imemoriais como “Feitiço da Vila” (1934), “Palpite Infeliz” (1936) e “Eu Vou pra Vila” (1931), expondo as extremas transformações do “Século do Progresso” (como define o samba póstumo lançado por Aracy de Almeida em 1938), mas também o que se conservou e o que ainda há de Noel Rosa impregnado na paisagem e na alma do bairro.

“Três Apitos” (1951), lançado por Aracy de Almeida 14 anos após a morte de Noel

Nas muitas panorâmicas aéreas espalhadas pelo filme aparece, por exemplo, a bela construção da Companhia de Tecidos Confiança, inspiradora da fábrica de “Três Apitos” (também lançada postumamente por Aracy, em 1951), hoje transformada numa rede atacadista, mas preservada inclusive pela simbólica “chaminé de barro” retratada na letra.

Como destrincha o filme, o “poeta da Vila” está arraigado de ponta a ponta no imaginário local, a compeçar por letreiros luminosos tipo Túnel Noel Rosa, Restaurante Feitiço da Vila, Drogaria Noel Rosa, Chaveiro Noel Rosa. Na fachada da escola de samba Unidos de Vila Isabel, uma estátua de Noel em tamanho gigante ajuda a compor a ambientação, e assim o fazem também as cenas cotidianas captadas pela câmera – como, por exemplo, as conversas alcoólicas em chinelos e bermudas no botequim da esquina (para citar outro clássico noeliano, “Conversa de Botequim“, lançado em 1935 na voz do próprio Noel) ou a barbearia improvisada a céu aberto que remete à Vila Isabel de cem anos atrás, mas agora frequentada também por entregadores de aplicativo.

Em vez de colocar sumidades (em geral sempre as mesmas) para falar sobre o protagonista, o documentário mais modesto de agora se guia por critérios geográficos e afetivos, e elege personagens que moram na Vila Isabel e/ou mantêm ligação íntima com o bairro e com o imaginário de Noel Rosa – sucedem-se, por vezes em duplas e trios, Martinho da Vila e sua filha Mart’nália, Cláudio Jorge, Nilze Carvalho, Moacyr Luz (criador do Samba do Trabalhador, no Clube Renascença, no bairro vizinho do Andaraí), Zé Renato, Edu Krieger, Dori Caymmi (para citar apenas os artistas ouvidos)…

Outro recurso, de importância máxima, é o de compilar as vozes dos pares históricos de Noel Rosa, a partir de registros radiofônicos, e aí a coleção de depoimentos é um deleite: Braguinha (colega do compositor de de Almirante no Bando de Tangarás, ainda nos anos 1920), Cartola, Cyro Monteiro, Pedro Caetano, Haroldo Barbosa, Nássara, Russo do Pandeiro

Dos tempos idos do princípio da era de ouro do samba, aparecem em pessoa e em movimento, em cenas de acervo, duas artistas em particular, não por acaso as intérpretes mais importantes de Noel Rosa. Aracy de Almeida desfia sua prosódia muito pessoal: “Era um pouco grilado, cheio de transas”, “quando comecei, ninguém fazia fé em mim, só ele, os outros ficavam só no mocó”. Em imagens pouquíssimo difundidas, Marília Baptista exibe sua beleza incomum e rememora “Último Desejo“, o canto de cisne de Noel (gravado por Aracy de Almeida em 1938, logo após a morte do autor).

Marília Baptista canta “De Babado” (1936), de Noel

Desse mesmo departamento é a cena incrível em que o Bando de Tangarás canta e toca “Vamos Fala do Norte” (1929), provavelmente as únicas imagens em movimento de um artista que morreu vilanizando o cinema falado como “o grande culpado da transformação” (como diz em “Não Tem Tradução”, de 1933).

A única prova pré-IA de que Noel Existiu: “Vamos Falá do Norte” (1929), com o Bando de Tangarás – detalhe: nenhum deles veio do Norte

Prova mimosa do cuidado com que Joana Nin trata sua matéria são as datas de nascimento (ou de nascimento e morte) de cada uma das vozes ouvidas – parece bobagem, mas, além de servir como documentação histórica, permite entrever o balé de gerações no arco de alcance da influência de Noel.

As coisas ficam mais sérias quando a diretora Joana Nin sobe o Morro dos Macacos para ouvir a parte mais marginalizada da comunidade da Vila – no tempo de vida de Noel Rosa, o processo de favelização era incipiente, no Morro dos Macacos ou nos vizinhos Parque Vila Isabel e Morro do Pau da Bandeira (cantado por Leci Brandão em “Zé do Caroço”, de 1986). É nesse momento que o filme chega à questão racial e de classe social, que, apesar de crucial (ou exatamente por isso), costuma ser deixada de banda na literatura e no entretenimento noelmaníacos.

A gravação original de “Feitiço da Vila” (1934), por João Petra de Barros

Aqui aparece Euza Borges, numa conversa de botequim no Morro dos Macacos, louvando Noel com o senso crítico ligado: “Ele trazia essa questão burguesa nele”. Euza se refere indiretamente ao histórico bate-boca travado em forma de samba entre branco Noel Rosa e o compositor negro Wilson Baptista, que rendeu, da parte de Noel, os clássicos “Rapaz Folgado” (só gravado após a morte de Noel, novamente por Aracy de Almeida, em 1938), “Feitiço da Vila” (lançado por João Petra de Barros) e “Palpite Infeliz” (lançado por Aracy de Almeida).

Euza se reporta ao termo “feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém”, de “Feitiço da Vila”, pelo qual Noel se referia preconceituosamente às oferendas da chamada macumba. Ironicamente, o mesmo samba que Noel Rosa abraçou era uma das várias expressões do candomblé, ou seja, da religiosidade afrobrasileira de gente do asfalto e do morro, como seu antagonista Wilson Baptista.

Gravada por Francisco Alves e Mário Reis, “A Razão Dá-Se a Quem Tem” (1933) tem autoria atribuída a Ismael Silva, Noel Rosa (vendedores) e Francisco Alves (comprador)

É notória a desigualdade – racial e de classe social – que ajudou a construir a história do samba gravado, desde que cantores brancos como Francisco Alves e Mário Reis começaram comprar, nos morros ou no asfalto, composições de artistas negros como Ismael Silva, Cartola, Bide, Nelson Cavaquinho etc. Era quase uma regra: negros compunham os sambas que brancos cantavam e, não raro, vendiam parcerias imaginárias a eles.

Não à toa, Noel foi um dos poucos compositores de samba que conseguiram gravar seus próprios discos nos anos 1930, sem ter uma voz espetacular, como também não tinham Cartola, Ismael, Wilson Baptista ou Nelson Cavaquinho. Duas décadas se passariam até que Ismael conseguisse lançar um disco próprio; Cartola e Nelson só estrearam nos anos 1970, 40 anos depois do início de suas caminhadas artísticas. O caso de Wilson Baptista foi mais drástico: seu canto só foi ouvido pela primeira vez em 2023 (veja aqui).

O filme de Joana Nin passa ligeiramente pelo espinhoso tema racial/social, mas a diretora deixa uma mensagem na garrafa na escolha de seu título: Um Espírito Circulante é uma expressão cunhada no Morro dos Macacos por Euza Borges, que também afirma, definindo a ligação entre sua comunidade e Noel Rosa: “Nosso Noel não é erudito, é bagaceiro”. Não é preciso santificar nossos heróis para assegurar nosso amor por eles.

Pequenos cuidados podem passar

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