
A cena começa com Maria Fernanda Cândido em silêncio, gesticulando suave e lentamente. O espaço cenográfico é minimalista, apenas com um piano de cauda à esquerda do palco. O ambiente proposto por Fábio Namatame, que também assina o figurino, é intimista e introspectivo. A luz de Caetano Vilela, que trabalha com sombras e poucas cores, está em perfeito diálogo com a densidade emocional do texto. A pianista Sônia Rubinsky reveste o espetáculo com melodias delicadas, que acompanham a narrativa de forma singular.
Este é o início de Balada Acima do Abismo, dramaturgia de Catarina Brandão e sob direção de Gonzaga Pedrosa. A atriz interpreta a mais internacional escritora brasileira, Clarice Lispector. Com uma voz calma e introspectiva, ela parece estar confidenciando uma memória íntima, aparentemente apenas para si mesma. “Eu nasci numa aldeia chamada Tchechelnik, que não figura no mapa, de tão pequena e insignificante. Naquela terra, eu literalmente nunca pisei. Fui carregada no colo pelos meus pais, que estavam a caminho do Brasil quando precisaram fazer uma pequena parada naquela cidade para que eu nascesse. Cheguei ao Brasil com dois meses de idade. Sou brasileira naturalizada, mas por questão de meses poderia ter sido brasileira nata”, diz ela.
A história de vida de Clarice Lispector é conhecida, e já levada em outras produções teatrais e cinematográficas: ucraniana de nascimento, , sua família judaica emigrou para o Brasil na perseguição nazista, cresceu em Pernambucano e no Rio De Janeiro, trabalhou como jornalista, mas se tornou uma das maiores escritoras do século 20 no Brasil. Dona de uma escrita singular, que não escondia a condição feminina, a solidão e a incessante busca pelo sentido da vida, Clarice deixou tratados da humanidade como Perto do Coração Selvagem, Laços de Família, A Paixão Segundo GH e A Hora da Estrela.
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“Escrever salva. Salva a alma presa. Salva a pessoa que se sente inútil. Salva o dia que se vive e não se entende, a menos que se escreva. Escrever é abençoar uma vida que não foi abençoada”, recita Maria Fernanda Cândido em Balada Acima do Abismo, que em cada expressão facial não esconde a intensidade emocional das palavras, às vezes de forma dolorosa. A escritora e a atriz, as duas, parecem ter ciência da gravidade dos sentimentos revelados ao público. Em 2023, o romance A Paixão Segundo GH, foi adaptado para o cinema pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, que convidou Maria Fernanda Cândido para o papel principal.
A música de Sônia Rubinsky, que tocará Villa Lobos, Nepomuceno e Rachmaninov, não é apenas um acompanhamento cênico. Ao mesmo tempo que preenche os silêncios e as pausas, inspirados no teatro de Harold Pinter (necessários para a compreensão do texto profundo), os acordes do piano criam uma extensão da própria narrativa. Eles refletem as mudanças de tom do texto, ora pendendo para a tristeza, ora trazendo esperança. E, curiosamente, sugerem um espetáculo dentro de outro espetáculo.
O público deve sair da peça reverberando e refletindo sobre várias frases pinçadas nos 75 minutos de duração, mas especialmente a contida no título, Balada Acima do Abismo. Ela revela a constante luta empreendida por Clarice Lispector entre a fragilidade e a resiliência humana que carrega dentro de si.
A peça, com ingressos praticamente esgotados em São Paulo (resta uma sessão com brunch, no dia 9), deve percorrer outras capitais brasileiras, incluindo dos Estados do Rio de Janeiro e de Pernambuco, onde viveu a escritora. O espetáculo estreou em Paris, onde a atriz vive há 7 anos, e marcou a reinauguração do teatro D-Jaraguá, no hotel Nacional Inn Jaraguá, no centro da capital paulista.
Gostei da forma como você conseguiu conectar diferentes conceitos e criar uma análise tão coesa.