Um dos mais brilhantes violonistas brasileiros em atividade, André Siqueira acaba de lançar Aura (independente, 2024), álbum completamente autoral, de violão solo, em que reafirma seu talento, versatilidade e técnica apurada.
O repertório perpassa diversas fases da carreira do músico, desde “Amendoim na chuva”, que fecha o novo trabalho, composta quando ele tinha 15 anos, até “Valsa lunar”, de 2023.
A “Valsa aquariana” é dedicada ao amigo Toninho Ferragutti, acordeonista com quem Siqueira dividiu o álbum Valsas de Garoto (Selo Sesc, 2024), dedicado ao repertório do violonista e compositor Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955).
O conceito de Aura está centrado em composição e improvisação. É um álbum que passeia por diferentes gêneros, como valsa, frevo, chamamé, samba e moçambique (parte do congado mineiro), para ser fruído por ouvintes comuns e estudado por violonistas e estudantes do instrumento.
Seu repertório inclui músicas premiadas, casos de “Canto da praia” (concurso Novas 4, 2019), “Atento ao tempo” (primeiro lugar no concurso de composição do festival de violão de Teresina, 2023) e a citada “Valsa aquariana” (segundo lugar no mesmo concurso, 2024).
Aura foi gravado na Faculdade de Tecnologia de Tatuí/SP em 27 de novembro de 2023.
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Confira a seguir um faixa a faixa, por André Siqueira:
“Atento ao tempo”: é uma peça derivada do movimento pendular da mão esquerda. O próprio gesto traz em si a quantidade de energia para sustentar a melodia realizada com campanellas com o objetivo de gerar ressonância e fazer com que a própria melodia se sustente a partir da interação de seus harmônicos.
“Frevo”: é uma peça da década de 1990, na qual a ideia rítmica da cultura popular já se faz presente. Com arpejos rápidos, representa um desafio técnico no qual o jogo da melodia precisa estar precisamente encaixado ao ritmo.
“Vozear”: originalmente composta como canção, esta versão instrumental procura realçar movimentos harmônicos pouco usuais e uma melodia que busca o equilíbrio entre saltos angulosos e linhas contíguas.
“Canto da praia”: composta no dia 31 de dezembro de 2017, em Itapema/SC, esta música traz o sabor do chamamé, ritmo fronteiriço que percorre todo o sul da América Latina e que traz outro elemento presente em vários momentos deste álbum, a polimetria. Aqui uma sobreposição de métrica ternária e quaternária em uma gravação que se diferencia da gravação anterior – realizada para o prêmio Novas 4 – devido ao interlúdio improvisado que se mantém dentro das fronteiras da forma e do ritmo.
“Flor de lótus”: gravada com o violão barítono (afinado uma quarta abaixo do violão normal) esta peça foi composta em 2020 e traz, além das ressonâncias presentes em todo álbum, movimentos de contraponto e detalhes melódicos que são derivados de arpejos de encadeamentos harmônicos que dialogam com um certo impressionismo.
“Serena”: uma valsa rápida com um movimento melódico amplo que traz duas partes em diferentes tonalidades, a segunda peça mais antiga do álbum, composta em 1995. Ainda com resquícios de cadências tonais simples, mas com uma melodia cativante.
“Valsa lunar”: outra valsa, esta bem recente, composta em 2023, baseada em três planos bem distintos que se movimentam a partir de acordes nos quais o desafio está em separar radicalmente a melodia de rítmico quase estático do plano intermediário que gera o discurso harmônico. Um fato interessante sobre esta valsa é que, na minha percepção, os acordes isolados nos dizem muito pouco. Assim, o que sustenta esta peça é o fluxo entre estes acordes e o motor rítmico gerado pelos intervalos de segundas que ficam quase escondidos no meio destes acordes.
“Inhambu”: esta peça surge instrumental mas recebe letra de Brisa Marques, tendo sido gravada pela cantora Silvia Borba com participação de Mônica Salmaso; portanto, esta gravação acabou se impregnando de uma certa vocalidade. De caráter impressionista, a melodia conduz por caminhos que remetem a singeleza do campo com suas cores, cheiros e sons.
“Valsa aquariana”: dedicada ao amigo e mestre acordeonista Toninho Ferragutti, traz no título uma brincadeira com o que costumam dizer de nosso signo – eu também sou aquariano, do dia de Iemanjá –, a de que mudamos de opinião a todo tempo. Pois bem, desta brincadeira, para além da dificuldade técnica na execução, com arpejos rápidos, campanellas e ressonâncias, na terceira parte temos a tentativa de gerar uma textura complexa ao violão apresentando três diferentes planos métricos, cinco tempos nas cordas agudas, três tempos nas cordas do meio e quatro tempos nos baixos. Se para um percussionista isto já seria um desafio, para um violonista é o trabalho de uma vida!
“Serra abaixo”: esta música talvez seja uma síntese de minha busca na criação de uma identidade e assinatura ao instrumento. Desde criança fui muito impactado pelas manifestações de cultura popular rural. Tocando há mais de 20 anos com violeiros, tive a oportunidade de visitar e assistir de perto muitas destas manifestações. Neste “Serra abaixo” (sim, o nome da música é exatamente o nome de um tipo de moçambique – parte do congado mineiro), a melodia se desprende enquanto o ostinato, tão presente em toda a cultura popular, sustenta a textura. A ideia da polimetria também salta aos ouvidos através da interação da melodia, dos baixos e de um pequeno paiá amarrado aos pés. Mais uma tentativa de ampliar os limites do instrumento através do uso de todo o corpo como fazedor de música.
“Amaranto”: com nome de planta, esta música surgiu em um local muito gostoso que temos aqui em Londrina/PR e que serve como refúgio sempre que o mundo mostra os dentes. Com formato de canção, também surge quase concomitantemente à letra. Porém, aqui, trago a versão instrumental, melodia simples que se inspira em um belo descanso numa rede, debaixo das árvores.
“Amendoim na chuva”: esta é uma das minhas primeiras composições, criada quando tinha 15 anos e ficava horas com o violão na mão na casa de meus pais na pequena Paraguaçu Paulista. Outro tempo, um tempo estendido. No entanto, esta talvez seja a música mais “alegre” do álbum, inocência que trouxe aqui para que se fechasse um ciclo, da infância e adolescência musical até hoje com a possibilidade e o presente que me foi dado pela vida, de ter consciência de cada nota tocada. Espero que o ouvinte aprecie este trabalho, que é uma parte importante de minha alma.
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Ouça Aura: