O mistério das fotos escassas de Dalton Trevisan

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O escritor Dalton Trevisan em 26 de junho de 2008, no Centro de Curitiba (fotos de Rodolfo Bührer)

É amplamente sabido que o escritor Dalton Trevisan (1925-2024), à maneira de J.D. Salinger e Rubem Fonseca, exercitou como poucas pessoas no mundo a arte de repelir o assédio. Ou podemos chamar, simplesmente, de o ofício de evitar pessoas?

Uma coisa que o incomodava profundamente, mais até do que uma abordagem na rua, era que o fotografassem. Para o autor, a fotografia, publicada, facilitaria o seu reconhecimento e, pior que isso, complicaria o seu trânsito tranquilo (e anônimo) pela cidade na tarefa de interagir livremente com o cidadão comum, colher suas impressões, repor a matéria-prima de sua literatura.

É por isso que os artigos e mesmo reportagens de TV ou internet que estão sendo publicados desde a segunda-feira, 9, quando se noticiou a morte do escritor em Curitiba, aos 99 anos, são ilustrados principalmente com imagens antigas do autor, algumas em preto e branco, esmaecidas, extemporâneas, quase todas visões à distância, de longe. Raros conseguiram capturar o reflexo do arredio Vampiro de Curitiba.

Curiosas histórias cercam as circunstâncias das últimas fotos de Trevisan em público, na rua, em Curitiba, onde vivia. A primeira aconteceu na tarde friorenta do dia 26 de junho de 2008. O jovem fotógrafo Rodolfo Bührer trabalhava então no jornal A Gazeta do Povo. Ele não conhecia Dalton Trevisan. Por volta das 14h30 da tarde, quando chegou para trabalhar, resolveu antes tomar um café a uma quadra da sede do jornal, num tradicional ponto de encontro de jornalistas. Ele encontrou então o colega Rogério Galindo.

Quando saíam do café, Galindo chamou sua atenção para um homem de boné que se aproximava da sede do jornal. “Sabe quem é aquele cara ali? É o Dalton Trevisan, o escritor”, apontou o colega, espantado. Sabendo da fama de arredio de Trevisan, Rodolfo sentiu vibrar o sensor de aranha de uma oportunidade. Dalton Trevisan entrou pela porta principal do jornal, então o jornalista subiu correndo por uma outra porta e foi até a Fotografia. Agarrou sua câmera e puxou uma lente de 400mm e desceu novamente para a rua Pedro Ivo. 

“Desci maquinado. Eu sabia que ele era avesso a fotos, então fiquei longe, atrás de um orelhão, a uma quadra de distância”. Depois de uns 10 minutos de espera, o escritor saiu do edifício do jornal e iniciou sua caminhada pela cidade. Como andava no meio da multidão, era necessário paciência para que os transeuntes saíssem da frente e fosse possível enquadrá-lo na foto. O autor não o viu. Quando terminou, Rodolfo subiu de volta, ofegante, eufórico. “Cara, fiz uma puta foto do Dalton Trevisan”, disse ao seu editor.

“Foi aí que começou a minha tragédia”, relembra o fotógrafo. O editor até que se animou, mas logo a notícia chegou à chefia do jornal, que lhe chamou energicamente a atenção. Disseram que o escritor tinha uma relação de confiança com o jornal, que nunca poderia ter sido fotografado daquela maneira. Acusaram o jornalista de faltar com a ética, surrupiar uma imagem não autorizada. Falaram até em apagar os registros. Mas o fotógrafo já os tinha copiado. Rodolfo ainda tentou argumentar. “Só fiz o meu trabalho. Esse cara merece uma foto”, disse. Mas não houve acordo. O uso das fotos foi prontamente descartado pelo jornal. O fotógrafo ainda pensou: “O dia em que esse cara morrer, vão querer a foto dele…”.

Algum tempo depois, um jornal de São Paulo conseguiu da editora de Dalton autorização para publicar um conto inédito do autor. Para ilustrar o feito, a empresa enviou um fotógrafo a Curitiba para fazer o tradicional plantão na frente da casa do escritor. Muitos se postaram ali tentando capturar um flagrante da vida do escritor, de suas movimentações pela cidade. Quase ninguém conseguiu. O enviado especial do jornal paulista também fracassou. Mas aí alguém lembrou que um fotógrafo de Curitiba tinha feito fotos recentes de Dalton Trevisan. Foram até Rodolfo, que não teve dúvidas: cedeu uma de suas fotos para ilustrar o conto – não cobrou nada, só pediu que pusessem o crédito do autor. Foi mais uma temeridade.

A diretora do jornal de Curitiba, Ana Amélia Filizola, o ameaçou de lhe dar uma advertência por vender, sem autorização, material exclusivo da empresa. Ele argumentou que não caberia o castigo, já que não vendera nada, cedera gratuitamente. “Não me demitiram, mas fiquei queimado na redação. Me chamavam de Niki Lauda”, ele recorda, rindo. Mas sua situação não ficou nada boa na empresa. Em 2010, ele se credenciou para cobrir a Copa do Mundo de Futebol e não o liberaram para ir. Rodolfo então decidiu pedir demissão e levou seu acervo de fotos consigo.

Na segunda-feira, após a morte de Dalton, uma agência internacional de fotografia procurou Rodolfo e lhe encomendou as fotos. Ele as cedeu e, nesses últimos dias, a fotografia capturada em 2018 “saiu em tudo quando é canto”, para alegria do jornalista. Mas o jornal mesmo no qual ele trabalhou nunca publicou as fotos. “Diziam que havia um acordo com o Dalton”, ele lembra. “Nunca fiquei sabendo se ele gostou ou não das fotos”.

O zelo da Gazeta do Povo se repetiria em 2014, quando Dalton Trevisan completou 90 anos. O jornalista Cristiano Castilho estava em frente à antiga residência do escritor fazendo um perfil da morada do artista, um ponto simbólico da cidade, no Alto da Glória. De repente, ele viu passar o escritor em carne e osso carregando uma sacola de supermercado cheia de mamões. “A pauta caiu porque ‘alguém’ ligou para a redação, ordenando a não publicação, inclusive das fotos, que agora se tornam públicas pela primeira vez”, escreveu Cristiano nesta terça-feira, 11, na Folha de S.Paulo, onde contou a história. “Sua opção pelo anonimato e pela discrição friccionar as relações de poder (ou seria algo entre o privilégio e a admiração?) que mantinha com jornalistas, confidentes e políticos. Algo bem provinciano. Bem curitibano”, concluiu Cristiano em uma rede social.

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