A Mulher da Van virou uma peça, depois um filme, mas foi um episódio real na vida do autor inglês Alan Bennett. Em 1974, ele convidou Mary Shepherd, “uma vagabunda” em suas próprias palavras, a estacionar seu veículo onde morava na garagem de sua casa, em Camden Town. Lá, ela permaneceu por 15 anos. Não se tratava de um ato de gentileza, como definiu o escritor, mas uma forma de cuidar dele mesmo. Era isso ou ter de enfrentar as frequentes escaramuças que “senhorita S” tinha com os vizinhos e curiosos.
O argumento da peça, que ganhou uma versão brasileira em cartaz no Sesc Pinheiros, permite, à primeira vista, imaginar que há um grande enredo que envolverá a complexidade das relações humanas. Mas essa história não é assim ambiciosa, nem a montagem pretende ocupar esse papel. Nathalia Timberg, uma das atrizes mais longevas e importantes da cultura brasileira, hoje com 95 anos, se encantou com A Mulher da Van e quis montá-la. Esse desejo surgiu 15 anos atrás, mas só agora pode ser realizado. Imaginou que seria a sua última montagem, mas o acolhimento do público já a faz pensar o contrário. Ela quer mais.
Em uma entrevista para a Folha de S.Paulo, a atriz afirmou que “essa simplicidade do texto contrasta com o mundo que está vivendo uma passagem. A tecnologia toda-poderosa precisa encontrar o seu lugar sem violentar os seres humanos”. É irônico, e até bonito, pensar que é justamente a tecnologia que a socorre no palco. Nathalia Timberg tem um tablet preso à cadeira de rodas sobre a qual ela encena durante toda a peça.
Mais que uma providencial ajuda para lembrar o texto de A Mulher da Van, o dispositivo eletrônico usado por ela abre um potencial de possibilidades cênicas para um mundo que precisa discutir com seriedade a inclusão. O público está ali para ver a grande dama do teatro, da TV e do cinema no palco, não para saber se ela consegue verbalizar um texto de cor e salteado.
Mary Shepherd não era uma mulher fácil, que o diga Alan Bennett. Na peça, ele é interpretado por dois atores (Caco Ciocler e Eduardo Silva), tal como na versão inglesa, que estreou em 1999. Há um conflito evidente entre os dois personagens, uma referência à própria inquietude de quem decidiu abrigar uma acumuladora de coisas, desajeitada socialmente, ao mesmo tempo em que procurava entender o seu gesto que era um misto de caridade e autopreservação.
No fundo, A Mulher da Van é uma história que opõe a culpa liberal de uma classe média e o instinto de preservação territorial mais básico. Os vizinhos começam a questionar um carro parado nas vizinhanças, não pelo veículo em si, mas pela presença da mulher indesejada. Conseguem, com o poder público, impedir que ela ficasse nas redondezas. E nunca deixaram Bennett sossegado por ter abrigado aquela mulher de hábitos pouco sociáveis.
Dirigida por Ricardo Grasson, a peça foi traduzida por Clara Carvalho e ainda conta no elenco com Duda Mamberti, Roberto Arduin, Lilian Blanc, Noemi Marinho e Cléo de Páris. A montagem se vale do generoso Teatro Paulo Autran e da própria estrutura do Sesc para conseguir fazer caber uma van no grande palco. Nathalia Timberg, que completou 95 anos nesta temporada, contraiu Covid-19 na primeira semana, mas já está totalmente recuperada.