Severino de Salgueiro

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Há uns 20 anos, comprei dele uma mini harpa de 15 cordas com pautas musicais desenhadas, papeis que a gente colocava sob as cordas e dedilhava canções conhecidas “ligando” os pontos. Noite Feliz. Fascinação. Entre Tapas e Beijos. Parabéns Pra Você. Até outro dia, essa mini harpa rodava ali pelos cacarecos nas caixas de bugigangas que carrego pela vida afora. Ele vendia seus produtos nas imediações do Filial, do Genésio, pelas mesas dos bares. Algum tempo depois, passou a vender petecas coloridas. Como fosse baixinho e fisicamente parecido com o folclórico deputado federal Severino Cavalcanti (1930-2020), ele acabou ficando conhecido como Severino, mas seu nome mesmo é Francisco.

Fazia uma década que eu não o encontrava, e hoje o vi passando pela calçada da Fornada da Vila Nova Conceição. Fui atrás e chamei. “Severino!”. Ele parou e veio. Eu lhe disse que era bom vê-lo, que tinha comprado coisas dele ali na Vila Madalena tinha muito tempo. Ele ainda é o mesmo, não mudou nada, não envelheceu nadinha. Me contou que faz isso há mais de 30 anos em São Paulo, mas agora só vende petecas.

Severino é de Salgueiro, sertão de Pernambuco, a uns 500 km do Recife. Disse que, quando veio de lá, nem time de futebol tinha na cidade. Outro dia, viu pela TV o Salgueiro Atlético Clube jogando contra o Corinthians na Copa do Brasil e ficou espantado. Contou que não tem saudade, que não conseguiria mais viver em Salgueiro porque teria que viver como as pessoas de lá, e agora só sabe viver como as pessoas daqui.

São Paulo tem centenas de personagens únicos pela noite afora. Perguntei a Francisco, ou Severino, se ele lembrava de um cara que se apresentava aos clientes da seguinte maneira, sempre de um jeito ameaçador: “Boa noite, eu sou um ex-presidiário…”. Ele disse que nunca trombou com esse. Curioso: eu me lembro dos dois no mesmo bar, na mesma noite. Tinha um catarinense que vendia origamis. Tinha o poeta de chapéu de couro e folhetos de cordel. Outro dia conheci um novo, um garoto que não só vende brisadeiros (não, corretor, não eram triviais brigadeiros), como desconfio que faz um lanche antes do serviço. Entre as muitas coisas que São Paulo tem de aconchego, essa é uma das formas mais ricas, que nunca deixa de marcar (mesmo quando ligamos o filtro defensivo da indiferença total). Alguns se incomodam com o assédio, mas está longe de ser um cerco de fitinha do Senhor do Bonfim em marco turístico; é um comércio diversificado, surpreendente, multicultural, contém sutilezas geográficas. No final das contas, só não deixamos que faça parte da nossa história porque somos presunçosos demais na nossa saga Edmar Bregman (um personagem intelectual menos lembrado do Glauco, mas cada vez mais presente). Precisamos reagrupar.

ensaio fotográfico: nana tucci

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