Grupo Acaba e Pantanal, esses desconhecidos

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Grupo Acaba
Integrantes do Grupo Acaba durante a cheia de 1979 na cidade de Porto Murtinho - foto Raimundinho

“Eu sei que um dia estará tudo acabado”, dizia a canção de festival “Presiganga” (1972), mais ou menos nos mesmos dias em que seus cantadores sul-matogrossenses se consolidavam definitivamente sob o nome enigmático de Grupo Acaba. Como é comum em casos mitológicos como esse, a predestinação para o fim seria uma das várias histórias díspares usadas para explicar o título perturbador de um jovem conjunto musical que começava já avisando que ia acabar. Jornalista, músico, escritor e produtor musical, o bravo autor Rodrigo Teixeira confessa, a certa altura do livro Grupo Acaba – A História dos Canta-Dores do Pantanal, que não conseguirá dar uma solução definitiva para o enigma, e é assim mesmo que tem que ser, já que estamos em território fabuloso e fabular. A dúvida enriquece a biografia e engrandece a trajetória da trupe musical flutuante cujos mais de 50 anos de história Teixeira acompanha com rigor obsessivo nas páginas do livro. Por sinal, a idade certa do Grupo Acaba parece ser outro desses mistérios que não foram feitos para ser totalmente decifrados.

Teixeira ensina que a fábula se iniciou em meados dos anos 1960, quando alguns dos irmãos pantaneiros da família Lacerda começaram a se movimentar como artistas, ou então em princípios dos anos 1970, quando o agrupamento que se formou ao seu redor se consolidou sob o nome misterioso de Grupo Acaba. Em mais de meio século, passaram pela superfície flutuante desse rio Paraguai em forma de música nada menos que 55 músicos acabenses – não é qualquer grupo musical que goza do privilégio de cunhar um adjetivo próprio, e o Acaba é um desses raríssimos espécimes.

Grupo Acaba se apresenta em Coxim, no Mato Grosso do Sul – foto Arquivo Moacir Lacerda

Ainda que acabar não fosse na realidade o propósito inicial dos jovens festivaleiros que aos poucos se constituíram como acabenses, a finitude sempre esteve na perspectiva do coletivo. Volta e meia, um ou mais integrantes revela(m) a convicção de que o fim está próximo, e isso parece acontecer por ocasião da gravação de cada um dos pouquíssimos, raríssimos títulos de sua discografia. Talvez o presságio e/ou temor do fim assaltasse os acabenses de tempos em tempos tal como assalta quem tem um coração batendo no peito a possibilidade da extinção do muso inspirador máximo do grupo, o majestoso Pantanal. Em anos recentes, incêndios e outras formas de destruição tornaram esse temor mais presente, uma comprovação a mais da urgência que cerca a feitura e a existência da biografia assinada por Rodrigo Teixeira. Grupo Acaba é urgente, antes que acabe. 

Acontece algo parecido em alguns dos momentos mais emocionantes e dramáticos do livro, aqueles que retratam o nascimento do projeto Pantanal: Nascentes, Rios e Vertentes – 50 Anos, que se tornou em 2016 apenas o quarto álbum do Acaba em 37 anos, desde a estreia discográfica com Cantadores do Pantanal, em 1979. Como no rompimento de um dique que faz extravasar águas há muito tempo represadas, o magnífico quarto trabalho exclusivo do Acaba surgiu em 2016 como um álbum quádruplo, com nada menos que 85 canções, nenhuma delas supérflua ou descartável. À época, como de costume, alguns acabenses pareceram convictos de que Nascentes, Rios e Vertentes simbolizaria o encerramento de uma belíssima história. Será?

Ostentando potencial de regeneração espontânea após cada nova pancada (golpe, incêndio, crime, devastação, plantação de soja etc.), o Grupo Acaba tem ressurgido das próprias cinzas repetidas vezes, como se fosse uma força incontornável da natureza. Rodrigo Teixeira descreve esses movimentos de sístole e diástole usando a imagem perfeita dos ciclos pantaneiros de cheia e de seca. O coração que se enche e se esvazia de sangue é sul-matogrossenses, norte-mato-grossense, centro-ocidental, brasileiro, latino-americano, americano, ocidental, oriental, terrestre. Como o Acaba sabia desde o início, tudo acaba, até que renasça outra vez. 

Tal como o próprio Pantanal, o Grupo Acaba parece ser um tesouro secreto, muito pouco conhecido (e talvez por isso mesmo cuidadosamente preservado, apesar de tudo e de todos), que passa despercebido por brasileiros em geral, até mesmo pelos próprios sul-matogrossenses, como demonstra Teixeira. É uma pena, mas talvez também uma sorte, que tão poucos tenham tido até hoje o prazer de sorver as maravilhas musicais do Acaba. O trabalho de Teixeira demonstra com sutileza quão ilusório é o aparente isolamento acabense (e/ou da música do Mato Grosso do Sul, do Centro-Oeste, das fronteiras entre Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia etc.) em relação ao fenômeno mais amplo chamado música popular brasileira. É impressionantemente bonito como a história da música sul-matogrossense e a da brasileira se tocam e se misturam nessa fábula, muitas vezes sem que a gente nem mesmo perceba. 

Por exemplo, o Grupo Acaba e toda sua geração são frutos diretos da semeadura acontecida na chamada era dos festivais, que teve seu auge cerca de 15 anos antes de os meninos (e algumas meninas) acabenses triunfarem como vencedores de festivais em seu estado natal. A floração ficou evidente a partir do advento da canção “Kananciuê” (1979), que por sua vez se confunde com o nascimento do estado do Mato Grosso do Sul, quando o Mato Grosso original foi partido em dois pelo governo militar. Criado o novo estado, “Kananciuê” eclodiu como carta de intenções, a proferir em alto e bom som os traços mais marcantes da identidade sul-mato-grossense.

São comoventes e impactantes os depoimentos acabenses reunidos por Teixeira sobre a potência e a inevitabilidade do Pantanal descortinado pelo Acaba. “Não tinha nenhuma música de MS que cantasse as nossas belezas”, lembra um. “Falar de capivara em um poema foi um trabalho corajoso”, observa outro, desnudando a novidade que representava uma canção como “Mãe da Lua” (1979), apenas pela singeleza de nomear capivaras, caititus e jacarés do Pantanal. O Brazil não conhece o Brasil, diriam Aldir Blanc e Elis Regina, se estivessem vivos em 2024.

O Grupo Acaba e seus contemporâneos estão para a cultura pantaneira, fronteiriça e sul-matogrossense como os tropicalistas estão para o Brasil, assim como os pais da ex-integrante fundadora do Acaba Vera Gasparotto parecem estar para os pais de Nara Leão, em cuja residência se processava o desenvolvimento da bossa nova. Tão modesta, discreta e encaramujada, a pulsação do Grupo Acaba na eclosão de “Kananciuê” foi suficiente para mobilizar a atenção aguda do empresário musical paulista Marcus Pereira, fundador da moderna música brasileira independente. Ele próprio um homem-caramujo, Pereira revelou ao Brasil de dentro de sua concha os primeiros discos do carioca Cartola ou do Movimento Armorial pernambucano, para ficarmos apenas em dois exemplos notórios, além de viabilizar o primeiro álbum gravado em solo sul-mato-grossense – o do Acaba, que estava portanto no epicentro daquele furacão criativo, embora invisível e inaudível para a maioria dos olhos e ouvidos.

Perto da chegada dos anos 1980, um novo estado surgia no Brasil não-litorâneo e uma canção, “Kananciuê”, alegorizava o parto evocando, elogiando e celebrando a flora, a fauna e a população humana, sobretudo indígena, do interior profundo do estado recém-nascido. Aparentemente, ninguém naquele momento estava preparado para olhar de frente para a questão do genocídio dos povos originários – mesmo assim, no entanto, “Kananciuê” sagrou-se vencedora máxima do festival em que concorreu, triunfando a ponto de hoje ser um dos possíveis hinos informais do estado que a pariu, do estado que ela pariu. Mesmo hoje, quase meio século depois, poucos parecem prontos para compreender, reconhecer e enfrentar a sucessão de genocídios que assolam o país e o planeta – ainda assim, no entanto, o Grupo Acaba permanece vivo e pulsante, expulsando de dentro de si, volta e meia, novas sementes em forma de canção, disco, DVD, documentário, livro etc. 

Quando menos se espera, o Grupo Acaba volta a explodir como uma bolha de sabão, trazendo à superfície, como fez em 2016, uma canção chamada “Lágrimas Ácidas (Réquiem para o Rio Doce)“, libelo explícito contra a devastação em Minas Gerais e no Espírito Santo, ou outra, acachapante, chamada “Serpente de Ferro“. A letra dessa última foi escrita em 1975, no mesmo ano em que os não-sul-matogrossenses Geraldo Roca e Paulo Simões percebiam, nas entranhas de Mato Grosso (do Sul), a potência simbólica que desaguaria em mais um hino não-oficial de uma terra musical dos pés à cabeça, o hoje célebre “Trem do Pantanal” (1981). Tratando do mesmo tema, “Serpente de Ferro” esperou 41 anos para vestir-se de melodia e ser finalmente lançada, depois que o trem do Pantanal havia sido desativado, cancelado, emudecido, exterminado. Vão-se os trilhos dos trens, ficam as canções, os pantanais, os tamanduás, os portos de Corumbá. 

Almir Sater e os Espíndola Alzira, Tetê e Geraldo, no Fessul de 1979 – foto Ricardo Figueiró

Em meio a tanta poesia e a tanta dor (afinal, não são canta-dores os Acaba?), a pesquisa emocionada do gaúcho sul-mato-grossense apaixonado pelas próprias raízes Rodrigo Teixeira desvenda um punhado de evidências contundentes, que estavam bem diante de nossos olhos e não víamos. Como já fez em seus livros anteriores dedicados aos desbravadores musicais pioneiros dos anos 1950-1960 e à geração “Prata da Casa” das décadas de 1970-1980 (que trouxe à tona, entre outros, Almir Sater e Tetê Espíndola), Teixeira nos ensina agora que a comunidade biografada por ele guarda, entre suas inúmeras belezas, a de sempre desmentir a profecia auto-apocalíptica que formulou lá no início do início do início.

Queiram ou não seus integrantes (e felizmente eles parecem querer), o Grupo Acaba sobrevive como um organismo vivo que se nutre da própria força sobrenatural (ou melhor, natural), um organismo vivo que pode ser o próprio Pantanal, ou então o povo pantaneiro e/ou sul-mato-grossense e/ou Brasileiro e/ou terrestre. Desmentindo algumas das profecias terríveis que se auto-realizam permanentemente dentro de nossas mentes, o Grupo Acaba não acaba e não tem mais fim, não tem mais fim, não tem mais fim. O livro de Rodrigo Teixeira é a mais nova comprovação da permanência e da perenidade desse insondável e maravilhoso mistério.

(Leia mais sobre o Grupo Acaba aqui.)

(*) Texto publicado originalmente como prefácio do livro Grupo Acaba – A História dos Canta-Dores do Pantanal (Life Editora, 2024), de Rodrigo Teixeira. A versão em audiolivro está no ar no YouTube. Mais informações nos canais do projeto no Instagram e no Facebook.

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