A exoneração intempestiva, nesta quarta-feira, 17, do diretor do Museu da República, no Rio de Janeiro, Mario Chagas, está sendo vista como um episódio de autoritarismo na esfera da museologia federal. Algumas manifestações de servidores de museus apontam ainda para evidências de intolerância religiosa. Isso porque Chagas tem se empenhado em dar visibilidade (e mudar a abordagem museológica) no Museu da República ao Acervo Nosso Sagrado, a mais importante coleção afrorreligiosa do país, com 512 peças históricas da umbanda e do candomblé. Chagas foi acusado de estar desalinhado com a atual gestão do Instituto Brasileiro de Museus e do Ministério da Cultura.
“Nesse momento, os desafios de direção do Museu da República requerem outro perfil profissional, alinhado e integrado com o Ibram e o Minc, para o avanço em outras frentes de gestão estratégica”, informou nota da presidente do Ibram, Fernanda Castro, divulgada no final da tarde desta quinta-feira, 18. Uma servidora da instituição, Ana Cecília Santana, foi anunciada como interina, e o Ibram comunicou que realizará uma nova chamada pública para preencher o cargo de direção. A repercussão da demissão de Chagas está sendo grande. No governo de Jair Bolsonaro, de viés ideológico, houve perseguição explícita ao acervo, que tentaram engavetar, e os ativistas estranham um ato semelhante em um governo democrático.
Mario Chagas afirmou que a coleção Nosso Sagrado orientou transformações fundamentais na condução da museologia do Museu da República. Babalorixás e ialorixás passaram a ser ouvidos na condução das prioridades para o acervo. “Por ser o Museu da República, temos compromissos com direitos humanos e cidadania há muito tempo, mas a chegada dessas peças radicalizou muitas posições, incluinto o combate ao racismo religioso”, afirmou, em depoimento a um house organ da Defensoria Pública da União. “Ela impõe esse debate e é um excelente exemplo da necessidade de se combater o preconceito justamente por esse acervo resgatado ser o resultado dele”.
A direção de Mario Chagas apontava para uma priorização de acervo com o intuito de reparação histórica. Fontes informaram que a ordem para sua demissão teria partido da própria secretaria executiva do Ministério da Cultura. A exoneração foi tratada no podcast da jornalista e ativista Flávia Oliveira, da Rede Globo, na CBN Rio, e em diversos outros veículos, por conta da estranheza causada com a situação.
O Acervo Nosso Sagrado é oriundo de um expurgo. Entre 1891 e 1946, centenas de objetos sagrados das religiões afrobrasileiras foram apreendidos pela polícia do Estado do Rio de Janeiro, que movia então intensa caçada aos rituais do candomblé e da umbanda que chegaram ao Brasil com cidadãos negros escravizados. Expostos como “Coleção de Magia Negra”, permaneceram por um século sob a posse do Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Foi um tempo em que mães e pais de santo eram acusados de charlatanismo e curandeirismo e seus objetos rituais eram apreendidos como provas do “crime”.
Os objetos são os mais antigos do tipo que se tem notícia, o que mobilizou a comunidade museológica em sua proteção e trouxe euforia à militância afrobrasileira. Anéis de metal que pertenceram a líderes religiosos, joias, 22 cachimbos, 60 esculturas, 13 tambores, cerca de 10 peças de indumentária (200 dessas peças já eram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, o primeiro tombamento etnográfico do País). Os símbolos e desenhos talhados no material possibilitam ampliar a compreensão dos cultos, das origens, da força e das estratégias de sobrevivência de uma época em que as manifestações religiosas de matriz africana eram alvo de perseguição no país.