Cat Power estabeleceu a si mesma como pedra fundamental do indie rock em 1998, quando lançou o disco Moon Pix, fixando a partir dali sua reputação de alma soul em um gesto vocal de infinita extrema unção. “Eles nunca possuirão você/E você nunca vai ficar devendo pra eles, de qualquer forma”, ela cantava, aos 26 anos.

A banda californiana Pavement ancorou-se como um dos pilares do indie rock na primeira metade dos anos 1990, reinando até 1999, quando lançou o disco Terror Twilight. “Sempre que for real/O que quer que seja, me aguarde”, cantava Stephen Malkmus, o homem que destruiu as ambições de virtuosismo vocal do pop (e também as roupas de festa de combinação premeditada).

Passado cerca de um quarto de século, Cat Power e Pavement, agora cinquentões, se apresentaram em São Paulo no C6 Fest, na noite deste domingo, encerrando o festival no Parque do Ibirapuera. Foi um show seguido do outro, em apresentações de duração média de uma hora cada. Muitos chegaram lá atrás daquilo que eles prometeram como alternativas de integridade – estariam ali ainda intactas a independência e o compromisso de recusa? E o pacto com os despojamentos da juventude?

Cat Power retornou com as visões que tinham fixado as bases para que ela mesma triunfasse em 1998 e nos anos seguintes: as construções de Bob Dylan. Em 2008, ela compôs Song to Bobby, um relato da obsessão que a fez seguir os passos do cantor até um encontro pessoal em Paris. Cat Power (codinome da cantora Chan Marshall) finalmente gravou um disco somente com as canções de Dylan, recriando o lendário show que o bardo de Duluth realizou, aos 24 anos, em 17 de maio de 1966, no qual Dylan escandalizou uma plateia no Reino Unido (de tal forma que um sujeito o xingou de Judas – por estar cometendo o “pecado” de eletrificar sua música com guitarras elétricas). O show, que ficou célebre com o nome de Royal Albert Hall Concert, na verdade foi realizado no Manchester Free Trade Hall (a venue errada se consagrou graças ao crédito equivocado em uma bootleg). Cat Power identificou naquele momento da saga de Dylan algo que causou uma inflexão decisiva na cultura popular do século 20.

As canções que ela tocou foram todas de um período de composição que vai de 1962 a 1966 – coisas de cerca de 60 anos atrás, portanto, no período de formação geológica do garage rock, do pós-folk. De It’s All Over Now, Baby Blue (1965) a Baby, Let Me Follow You Down (1962), de Like a Rolling Stone (1965) a I Don’t Believe You (1964), de Leopard-Skin Pill Box Hat (1966) a One Too Many Mornings (1964), Cat Power adentrou um oceano de poesia e sons que acabou espalhando seu musgo por quase todo o Planeta no tempo que se seguiu.  

Todo acondicionado em um invólucro de preto & branco, da iluminação às roupas, da antiga gravatinha sem camisa às imagens expressionistas no telão (exatamente como Dylan tem feito em suas aparições recentes), o show de Cat Power alternou dois momentos distintos. Na primeira parte, o som muito baixo deixou a cantora agoniada, e ela passou uns bons momentos com o dedo indicador para cima implorando para que o volume da voz fosse ajustado. Bastante cheio, tornou-se difícil perceber as sutilezas da coisa no início do show – na tenda que se instalou atrás do Museu Afro ouvia-se o som vazado do palco grande no gramado.

Cat Power sabe que a questão nunca foi de fidelidade a Dylan (até porque ele é o primeiro a ser infiel a si mesmo). Os melhores momentos do show do C6 Fest foram os garageiros, os mais sujos, quando Cat, deusa das baladas smokey, soltou a voz sem piedade, com rascância, a partir da ardida Tell Me, Momma, aquele órgão sideral cobrindo a noite de estrelas, as guitarras (no passado, uma delas foi a do mitológico Robbie Robertson) povoando de influxos o burburinho de 5 mil almas em busca de ilustração instantânea. A cantora invocava no parque um velho sentimento analógico de heroísmo e urgência, um destemor inesperado.

Cat Power estruturou seu show exatamente como Dylan prescreve: ela entre violão e voz, e mais uma banda reforçada de seis instrumentistas, ladeada pela chave sonora de um órgão vintage Wurlitzer, tocado por Jordan Summers. A francesa Adeline Jasso, guitarrista e baixista, o baterista Josh Adams, o gaitista e pianista Aaron Embry, o guitarrista Henry Munson e o baixista Erik Paparozzi completaram o time.

O Pavement, que tinha elevado a imperfeição à categoria de arte, ressurgiu após uma década em São Paulo com status de culto. Em 2010, tocou na Choperia do Sesc Pompeia e até que tava bem vazio. A missão de Stephen Malkmus era bem mais simples do que a de Cat Power: deveria apenas se lembrar de si mesmo. E começou bem, com Grounded, do disco Wowee Zowee, de 1995, no qual a estratégia de repetição de riffs de guitarra e os ruídos se incorporam à lucidez melódica, que é mantida apenas por um fio ao longo das canções. Essa criação de Malkmus (que foi gestada em décadas anteriores pelo Television de Tom Verlaine) orientou boa parte do rock alternativo a partir daquele instante.

Agora com 57 anos, mas com o mesmo cabelo falsamente desalinhado de 30 anos atrás, a mesma calça de brim de atendente do McDonald’s, Malkmus fez uma auto-arqueologia refinada e envolvente na noitada. Depois de Grounded, tocou Silence Kid (do segundo disco da banda, Crooked Rain, Crooked Rain, de 1994). Aí Malkmus voltou ainda mais o relógio do tempo: tocou Summer Babe, o primeiro single do grupo, de 1991, caramelizada com um tempero pop. Eles tocaram ainda Kennel District, uma perfeição indie, composta por Scott Kannberg, parceiro da primeira formação do Pavement; In the Mouth a Desert (2002), Unfair (1994), Trigger Cut e Two States (1992), Shady Lane (1997), Type Slowly (1997). A diferença do som do Pavement para o que tinha reinado antes deles, como o som de Tom Verlaine, é que não há vestígios de orientalidade em seus mantras.

A atualidade de Malkmus reside não na convicção do que representou, mas na naturalidade com que reencena aquilo que é desde sempre. Amparado por uma galera da música que vai do bar ao palco com o mesmo pique, o Pavement faz uma jam que se destina a alegrar, antes de mais nada, seus próprios artífices. Acontece que, como ocorre sempre nesses casos, os mais desencanados sempre conseguem extravasar seu descompromisso para além de sua roda, e a plateia se divertiu pacas com a jornada.

O cantor do Pavement, Stephen Malkmus
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