Às vésperas de completar 88 anos, o multi-instrumentista alagoano Hermeto Pascoal recebe flores em vida, entregues pelo biógrafo Vitor Nuzzi, autor de Quebra Tudo! – A Arte Livre de Hermeto Pascoal, recém-lançado pela editora (e gravadora) Kuarup. Jornalista paulistano, Nuzzi se credenciou definitivamente à empreitada em 2015, quando publicou, pela mesma Kuarup, a biografia Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida, dedicada ao controverso compositor e cantor paraibano de “Disparada” (1966) e “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando)” (1968).
O livro se desenvolve de modo descontínuo, sem se apegar a cronologias lineares, o que em geral resulta em biografias algo difíceis de acompanhar – mas, nesse caso, justifica-se em parte por corresponder à maneira livre como Hermeto trata suas criações musicais e a música como um todo. O texto oferece exemplos abundantes dos métodos nada convencionais de compor (por vezes instantaneamente) e tocar inventados pelo artista nascido filho albino de pais negros, no povoado de Olho d’Água, em Lagoa da Canoa, hoje município, mas à época também um povoado pertencente à cidade de Arapiraca, no agreste alagoano.
O autor parte de um episódio ocorrido no Festival Internacional da Canção de 1972, quando Alaíde Costa foi interpretar a hermetiana “Serearei“, com arranjo orquestral do autor, que na etapa final, no Maracanãzinho, pretendeu levar alguns porcos ao palco como instrumentos musicais, mas foi impedido pela Censura do governo militar. O som foi desligado e nem a música pôde ser apresentada – Alaíde conta que se irritou e jogou o microfone longe, num ato menos célebre que o violão quebrado por Sérgio Ricardo no Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967.
Hermeto acabaria “tocando” porcos em estúdio, nos Estados Unidos, nas gravações de Slaves Mass (1977). Porcos seriam apenas um dos muitos instrumentos atípicos dos quais Hermeto extrairia música ao longo de oito décadas.
Quebra tudo! permite compreender a riqueza da trajetória e das parcerias cerzidas por Hermeto, desde os grupos efêmeros de samba-jazz que integrou nos anos 1960, o Conjunto Som 4, o Sambrasa Trio (com quem teve sua primeira composição gravada, “Coalhada“, inspirada num de seus apelidos) e o histórico Quarteto Novo, com Airto Moreira, Heraldo do Monte e Théo de Barros, formação que ajudou Edu Lobo e Marília Medalha a vencerem o festival de 1967, com “Ponteio“.
O grupo também havia vencido o festival do ano anterior, mas sem a presença Hermeto, segundo Nuzzi por critérios “estéticos” da Record. Airto, Heraldo e Théo defenderam “Disparada“, de Geraldo Vandré e Théo, ao lado do cantor Jair Rodrigues. Nessa época, Hermeto e família moravam na periferia leste de São Paulo, na Vila Mara, em São Miguel Paulista, de onde o músico se deslocava para tocar nos festivais da canção e nas boates da região central.
Segundo documenta o livro, o Quarteto Novo recusou convite para acompanhar Gilberto Gil em “Domingo no Parque” (que levaria o segundo lugar no festival de 1967 com os Mutantes nas guitarras e arranjo de Rogério Duprat). Em vez disso, o quarteto acompanhou Sérgio Ricardo em “Beto Bom de Bola“, em apresentação que terminaria com o violão quebrado e a desclassificação da canção. Nuzzi reproduz declaração de Hermeto a este jornalista na Folha de S. Paulo, em 2003: “Não íamos parar no Vandré e Edu Lobo, mas também não podíamos atacar de guitarras gritando no palco. Eu tinha conhecimento íntimo de que aquele movimento ia de alguma forma machucar a MPB, como machucou”.
A última aventura hermetiana antes de migrar para os Estados Unidos foi participar de um conjunto instrumental de intenções comerciais por iniciativa da multinacional têxtil Rhodia, o Brazilian Octopus, desta vez com o guitarrista tropicalista Lanny Gordin, o pianista Cido Bianchi (do Jongo Trio) e o violonista e guitarrista Olmir “Alemão” Stocker, entre outros. Hermeto é o único integrante do octeto que não aparece na capa do solitário álbum assinado pelo Brazilian Octopus, em 1970. Não é difícil imaginar o que havia por trás do pretexto sempre utilizado para deixa Hermeto fora de cena, de sua suposta “feiúra”.
Quanto às parcerias, as histórias são invariavelmente saborosas. O começo, no Recife, em 1950, foi tocando pandeiro e em seguida sanfona ao lado do irmão mais velho José Neto (morto em 1996, aos 61 anos), também albino, do paraibano Sivuca, idem, com quem seria confundido incontáveis vezes pelo tempo afora, e da cantora e compositora pernambucana Anastácia, futura companheira e parceira do sanfoneiro pop Dominguinhos.
O tempo mudaria em 1970, quando o casal exilado formado por Airto Moreira e Flora Purim chamou-o para Nova York e o apresentou ao mito Miles Davis (com quem Airto tocava à época). O encontro resultou em três números compostos por Hermeto, mas assinados por Miles no álbum Live-Evil (1971): “Igrejinha” (rebatizada de “Little Church“), “Nem um Talvez” (com nome em português mesmo) e “Selim” (Miles ao contrário).
O caso permanece controverso até hoje, e muitos músicos dão seus vereditos no livro. “Essas três músicas são de autoria de Hermeto Pascoal, que morava nessa época em Los Angeles, na minha casa. (…) Esse é um caso de furto. Não há outra palavra”, testemunha Edu Lobo, numa entrevista em 1979 ao programa global Fantástico, resgatada por Nuzzi. Ele também entrevista Flora Purim, para quem Miles “quis passar o Hermeto para trás”. Segundo Flora, a passagem de Hermeto para os Estados Unidos foi paga por Miles Davis.
Teria sido o trompetista e bandleader nascido em Alton, Illinois, quem cunhou a expressão “crazy albino”, muito utilizada daí em diante para descrever a Hermeto, que na prática ficou tão escondido com Miles quanto já havia ficado com o Quarteto Novo e o Brazilian Octopus. Mas foi a partir daí que o multi-instrumentista brasileiro consolidou-se como presença musical inescapável, em escala mundial, participando de discos de Airto e Flora e gravando enfim seu primeiro LP solo, Hermeto (1970), lançado pelo selo Cobblestone e distribuído pela gravadora Buddah, nos Estados Unidos. Publicado quando Hermeto colecionava já duas décadas como músico profissional, o disco foi produzido por Airto e Flora, e o baixista é Ron Carter. A faixa de abertura é a inaugural “Coalhada”, agora transformada em “Yogurt“.
De volta ao Brasil, seu primeiro álbum nacional foi A Música Livre de Hermeto Paschoal (1973), bancado pela Philips, com as autorais “Serearei“, “Bebê” e, em 14 minutos e meio, a muito nordestina “O Gaio da Roseira” (que havia sido lançada por Airto em 1971, com Hermeto nos teclados e Flora nos vocais). Nuzzi conta que a melodia da faixa “Plin“, creditada a Hermeto, resultou de um arranjo para “Ovo de Codorna” (1971), de Luiz Gonzaga, que acabou desossada da versão final.
Embora tenha participado do evento Phono 73, promovido pela Philips, Hermeto não aparece nos três álbuns ao vivo que resultaram do show coletivo. De acordo com Nuzzi, Caetano Veloso o convidou para uma apresentação em dupla no Phono 73, mas Hermeto declinou – o evento ficaria célebre por unir Caetano e o ídolo “cafona” Odair José. A rivalidade com os tropicalistas aflora no livro na descrição de desavenças de Hermeto com o próprio Caetano e com Tom Zé.
No outro polo da MPB, Hermeto apareceu como arranjador e músico no álbum Imyra, Tayra, Ipy (1976), do uruguaio-carioca Taiguara, censurado integralmente pela ditadura quando 5.000 cópias já circulavam. “Sem ser um artista de confronto com o poder, Hermeto viveu sua segunda experiência com a censura”, escreve Nuzzi. Para o cearense Fagner, fez os arranjos do experimental Orós, lançado no ano seguinte.
No Festival de Jazz de Montreux, Hermeto integrou jam session com Stan Getz, Chick Corea e John McLaughlin, em 1978, e de uma jam session eletrizante de cerca de 15 minutos com Elis Regina, em 1979. Com Hermeto ao piano, eles improvisaram releituras de “Asa Branca”, “Garota de Ipanema” e “Corcovado”, lançadas após a morte da cantora (e contra sua determinação em vida), em 1982. Nuzzi recupera declaração de Hermeto sobre John McLaughlin à época, que diz muito sobre a filosofia musical do alagoano: “Ele não é mau, não, o problema é que desistiu de ser músico para tentar ser o melhor guitarrista do rock. O mesmo aconteceu com Miles Davis, que resolveu formar o melhor grupo de rock do mundo”. Ao longo dos anos, Hermeto faria vaticínios semelhantes em relações a cantores estrelados da MPB.
Passagem pitoresca é trazida pela cantora e compositora sertaneja (nascida paraibana) Roberta Miranda, que conviveu com Hermeto durante a infância, quando sua família era vizinha do músico na Vila Mara, na periferia paulistana. No decorrer de sua história, o “bruxo” multi-instrumentista transou com artistas da MPB, como Tetê Espíndola, Ná Ozzetti e Jane Duboc, e com instrumentistas como Clóvis Pereira (no álbum Ritmos Alucinantes, de 1956, primeira aparição de Hermeto numa gravação), Jovino Santos Neto, Nivaldo Ornelas, Hector Costita, Grupo Pau Brasil (de Nelson Ayres), Márcio Montarroyos, Mauro Senise, Carlos Malta, Itiberê Zwarg, André Marques e inúmeros outros que circularam pelo endereço histórico da casa onde os pais de Hermeto se instalaram em 1958, no nascente bairro do Jabour, vizinho de Bangu, na zona oeste carioca.
Em “Na Casa do Campeão” (1991), a também internacional Joyce Moreno transformou em letra de música as indicações de como chegar ao Jabour (“pega a Avenida Brasil no quilômetro 32/ quando à direita aparece o Motel Carbonara/ você vai veer uma placa indicando Bangu…”). Como quase sempre, Hermeto continua até hoje morando afastado dos grandes centros, no bairro de Pedra de Guaratiba, também na zona oeste do Rio.
Outro fato pitoresco, este com tons poéticos, é a notícia de que uma nova espécie de árvore gigante recebeu o nome científico de Dipteryx hermetopascoaliana, para designar a “megadiversidade” do que resta de mata atlântica alagoana, comparável à pluralidade da música do homenageado.
Entrevistado por Vitor Nuzzi, Hermeto Pascoal revela-se, ele próprio, poesia pura. “Eu me criei com caçadores, sem enxergar direito. O cara procurando matar os passarinhos, o cara imitava todos para o passarinho vir. Aprendi de cara que o passarinho não gosta nem de ser imitado. Ele vem, mas para xingar a pessoa, ele vem puto da vida e passa correndo”, afirma o músico-passarinho a certa altura. “Não tinha nem luz na época, em Lagoa da Canoa. Aí eu pegava um talo de mamona, fazia uma flautinha, aí sim, imitando ninguém, aí vem sapo na lagoa, passarinho nas árvores, os bois, as vacas, qualquer tipo de animal, por bravo que seja, do porco ao leão. Eu aprendi como? No mato.”
Em seu conjunto, Quebra Tudo! dá a conhecer um pouco mais de uma personalidade que faz jus aos muitos apelidos recebidos pelo homem (bruxo, mago, crazy albino) e por sua criação (música universal, música livre, som da aura). Na sinfonia de sons produzidos em sua longa estrada, o protagonista de Quebra Tudo! se revela, ele próprio, um instrumento musical fabricado sob medida para suas invenções.