Madonna ou a catarse

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Quase ao final do show que eu assistia pelo computador, um jovem de 21 anos me perguntou: “Quem é maior? Madonna ou Michael?”. Respondi ao jovem, meu próprio filho, que a comparação era difícil, dado que Madonna tinha mais 15 anos de história no pop adulto que o Michael Jackson, que morreu em 2009. Isso foi pouco antes de Madonna dizer ao microfone diante de 1,6 milhão de pessoas na praia de Copacabana que uma das coisas mais polêmicas que ela tinha feito em toda sua carreira de “40 fucking years” tinha sido permanecer (“stick around”).

Foi dos pontos altos, acompanhado por muita gritaria a partir do mar de gente espalhada na areia de uma das praias mais famosas do mundo, da celebração gigantesca que Madonna fez como encerramento de sua Celebration Tour no último sábado, 4 de maio de 2024. Era um show que, de certa forma, tinha tudo para “dar errado”, de acordo com vaticínios dos mais pessimistas. Do lado dos apostadores do pior, muitos temores de arrastões, ondas de violência, confusão e gritaria por conta de uma aglomeração na casa de mais de milhão de pessoas em espaço público e aberto numa cidade marcada pela tensão urbana. Do lado mais “especializado” e, ao mesmo tempo, um tanto desinformado, vinham as críticas pelo fato de ser um show sem banda, em que a cantora performa a partir de bases instrumentais e vocais pré-gravadas. Se de um lado se previa o fogo da violência, de outro se imaginava a frieza de uma espécie de clipe ao vivo, previsível e sem novidades.

Diversa como o palco, a plateia de Madonna em Copacabana – fotos Marcos Hermes

Pior: parte das surpresas que o mais de milhão de pessoas que esteve no Rio viu no palco mais os da audiência recorde que assistiu ao show pela transmissão da TV teria sido desvelada nos ensaios obrigatoriamente abertos que Madonna fez nos dois dias anteriores no palco já montado na praia. Ali, vimos a cantora maranhense Pabllo Vittar e os ritmistas das alas jovens de várias escolas de samba ensaiando coreografia de “Music” (2000), soubemos quais eram alguns dos brasileiros que seriam homenageados nos telões e assistimos à própria Madonna aparecer mascarada por balaclavas de cores fortes para se juntar aos bailarinos. Centenas de pessoas que já estavam no esquenta diante do palco em Copacabana ou se aglomerando em frente ao hotel em que Madonna e sua equipe estavam hospedados, mais as milhares que acompanharam isso pelas redes sociais, portanto, já tinham sido desvelados alguns dos “segredos” com 48 horas de antecipação.

Nada disso, no entanto, anula a experiência do congraçamento que um show de música pop consegue propiciar – e esse era, justamente, o da maior artista pop de uma era em que a música pop tinha um tamanho e uma importância incomparáveis aos que vieram a seguir. A mágica do pop é essa: mesmo previsível, consegue ser catártico quando a experiência individual se torna coletiva e, de alguma forma, irmana artista e público.

E que público! Para começar, Madonna atravessou muitas gerações de fãs,  desde os anos 1980. Em sua maioria, mulheres e comunidade LGBTQIAPN+, para os quais sua trajetória de sucessivas e radicais transgressões foi responsável por acolhimento, identificação e liberação ao longo de décadas. Para além dos vários recordes de público para um show, estar com Madonna, mesmo que à distância, para muitas pessoas que acorreram ao show (alguns de ultimíssima hora), era a possibilidade de reviver esses momentos de cura e de descoberta de afeto. Para outras tantas, de reviver as emoções de ter feito parte dessa história.

The Celebration Tour foi milimetricamente planejada para comemorar a carreira de Madonna, da chegada em Nova York ao final dos anos 1970 aos anos 2020. Madonna tem 65 anos e, no ano passado, esteve gravemente doente. A proximidade com a mortalidade, que todos nós experimentamos com intensidade trágica durante a pandemia e, no caso dela, se radicalizou com esse episódio, deve ter contribuído para a concepção desse espetáculo como uma espécie de musical burlesco sobre sua própria vida. 

E Madonna, claro, também tinha uma clara agenda anti-etarista e feminista com a concepção do show: mostrar que uma mulher de mais de 60 anos, idade em que as mulheres são muito invisibilizadas em muitas camadas de suas vidas, pode o que quiser. Exibir o corpo, viver a sexualidade e prosseguir transgredindo e chocando o moralismo. Lembrando, Madonna Louise Ciccone, que é de formação católica e elegeu como nome artístico uma das formas pelas quais é conhecida a mãe de Jesus Cristo, foi excomungada por incríveis três vezes pela Igreja Católica.

As duas horas de show no Rio mostraram uma Madonna emocionada por dividir essa carga histórico-afetiva no palco em uma Copacabana tornada o centro de um Brasil diverso, dançante e que, nos últimos anos, vem sendo atacado pelo conservadorismo que saiu do armário armado de porrete. Precedida pela drag queen Bob the Drag, ela entrou aos gritos de “Madonna, eu te amo”, sua figura pequena (ela tem 1,61m de altura) domina o palco desde o início com “Nothing Really Matters” (1998). Pequena, loira e branca num mar de dançarinos de muitas cores e gêneros, ela se impõe desde o início como a diva, a rainha da porra toda, a kinga dos madonizados da platéia.

Todos os gêneros, etnias e sexualidades se embolam com Madonna no palco

Ao longo do show, Madonna iria usar o microfone mais de uma vez para falar com o público, deixando os tradutores simultâneos da TV de calças curtas em pelo menos dois trechos: no início de show, quando ela reconta sua história como uma jovem artista desconhecida que teve que fazer muito boquete (“blow job”, traduzido para “carinho”) para conseguir entrar nas boates e mais adiante, em que ela faz uma declaração de amor ao Rio e ao público, quando a “pussy” na frase “sinto a bandeira brasileira no meu coração e na minha buceta, estou no céu” obrigou a tradutora a usar a expressão “periquita”. 

Mas esses foram momentos até leves em comparação com o crescendo de imagens sexuais, propositalmente usando símbolos do sagrado e do profano, que o show iria desenrolar. Madonna, muito cedo em sua carreira, associou a liberdade do corpo e da sexualidade feminina à cultura queer, fazendo uma ponte entre as expressões marginalizadas pela heteronormatividade. Se isso ainda – ou de novo – soa transgressivo, nos anos 1980, quando ela explodiu como popstar, era ainda mais libertador e potencialmente subversico, uma vez que ela apontou para milhões de mulheres adolescentes e jovens daquele período que, no patriarcado, a única saída era se reconhecer também como pertecente à margem.

Não à toa um dos primeiros pontos altos do show é no momento em que ela homenageia personagens mortos pela epidemia da aids em “Live to Tell” (1986) com imagens dos telões, entre eles os brasileiros Cazuza, Renato Russo, Betinho e Zacarias (sim, d’Os Trapalhões). Momento fortemente emotivo e evocativo de doença que foi associada aos homossexuais masculinos, chegou a ser chamada de “peste gay” e, antes dos medicamentos retrovirais, fez muitas vítimas nesse grupo por ignorância e preconceito. Era a primeira chacoalhada na caretice, de muitas, que aconteceriam no show. 

A transição para o seu primeiro momento de maior popularidade se daria em “Like a Prayer” (1989), que se inicia com uma poderosa imagem de bailarinos negros pendurados de cabeça para baixo numa estrutura circular, caracterizados como Jesus, mas com máscaras de couro preto associadas à indumentária sadomasoquista. O clipe de “Like a Prayer” foi a razão da primeira excomunhão de Madonna, em 1989, por caracterizar Jesus como um homem negro com quem ela conversa e a quem beija. Momento de certa pirotecnia no palco, quando ela reproduz outra imagem que foi considerada escandalosa, a das cruzes em chamas numa referência a Ku Klux Klan. 

Ao longo de duas horas de show, viriam ainda mais camadas de provocações, sobretudo a partir de “Erotica” (1992) e “Justify My Love” (1990), músicas da fase mais iconoclasta de Madonna, na qual ela consagrou e embelezou, nos palcos e no livro de fotos Sex, todas as práticas sexuais chamadas de “desviantes”. É como se Madonna mais jovem e ainda pressionada pelo catolicismo tivesse ajustado as contas com Deus em “Like a Prayer” para botar para quebrar com uma estetização das sexualidades diversas – e, com isso, trazendo para junto de si o rebanho dos deserdados. Na música, ela mergulha nos sons das boates e inferninhos, fazendo pontes com a disco, a música eletrônica e as subculturas do underground noturno, principalmente as de origem negra. Na performance, radicaliza a temática sexualizada e afirma a liberdade dos corpos de todas as matizes de expressão de gênero.

E, para isso, era necessário colocar no centro do palco seu próprio corpo como agente libertário. No show, as coreografias precisas são pontuadas por cena em destaque, como fotogramas, de ela beijando na boca uma mulher trans, simulando masturbação, sexo oral e beijo grego. A esta altura, o Brasil que via o espetáculo nas areias ou pela TV estava, como sempre (e para sempre), dividido entre o horror hipócrita dos conservadores que espiavam as cenas “proibidas” pela fresta do armário e o regojizo, a alegria e, por que não, o sentido de comunhão daqueles que sentiam nessa teatralização um momento mágico de suspensão da caretice retrógrada. “Vogue” (1990), a coreografia de negros e latinos gays das culturas de pista de Nova York, vem ao palco como uma festa democrática, na qual brilhou a filha mais nova de Madonna, Estere, uma dançarina incrível de 11 anos.   

O tamanho e o poder da experiência pop de Madonna ao longo de sua carreira conferiu um sentido político inequívoco à sua performance, sentido que Madonna aprofundou em “Music”, chamando para o palco a cantora Pabllo Vittar e ritmistas mirins de escolas de samba do Rio. A esta altura, o Brasil triste do fascismo teve de encarar Madonna agarrada à Pabllo, ambas com as camisetas verde-amarelas da seleção brasileira, enquanto no telão desfilavam artistas e personalidades brasileiras como Paulo Freire, Marielle Franco, Mano Brown, Érika Hilton, Gilberto Gil, Daniela Mercury, Marina Silva

Não foi privilégio do Brasil. Ao longo de toda a turnê de 80 shows, Madonna escolheu artistas e personalidades locais para participarem ou serem homenageados justo na canção em que ela celebra o poder da música de juntar e misturar: “Music/ makes the people come together/ music/ mix the bourgeoisie and the rebel”. Aqui, no entanto, teve um sentido todo especial ver as cores da camiseta e da bandeira usurpadas pelo bolsonarismo numa espécie de gira de livramento, de lavagem pelos fluidos corporais e pelo caos anárquico provocado pelas imagens de subversão das várias hierarquias simbólicas. É Pabllo que coloca a mãe Madonna no colo, são os ritmistas negros e crianças que comandam o espetáculo, são os dois corpos sexualizados e livres (um deles sexagenário) que desfraldam a bandeira do Brasil. Livramento sim, mesmo que temporário.

Madonna no Rio talvez tenha sido, de verdade, o último grande espetáculo de um pop com uma dimensão que não existe mais. Não pela dimensão numérica apenas, que certamente é impressionante. Mas pela enormidade e complexidade da linguagem simbólica comum que o pop da geração de Madonna soube criar e pelo caráter coletivo que esses artistas conseguiam alcançar na era pré-digital. Não à toa, ela ainda dialogaria com Michael Jackson, num belíssimo cenário de jogo de sombras das silhuetas de ambos, rapidamente lido por alguém na rede social como Zé Pelintra e Maria Padilha, figuras da umbanda associadas à subversão sexual, na hora em que fundiu hits absolutos de ambos, “Billie Jean” (1982) e “Like a Virgin” (1984). 

Sorte a nossa que Madonna escolheu também o Brasil que se sentiu oprimido e ameaçado pelo conservadorismo agressivo dos últimos anos para ser co-autor dessa ópera em que ela dividiu com a gente o raio de luz de sua generosidade diversa, colorida, subversiva, provocante e alegre, mil vezes alegre.

Santa Madonna irrita a Klu Klux Klan, bolsonaristas e outros bichos reacionários

(Leia mais sobre Madonna e o pop atual aqui.)

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2 COMENTÁRIOS

  1. Ótima resenha! Só deixo duas observações: o nome artístico da Bob é “Bob the Drag Queen”, e a canção “Music” não existia nos shows anteriores, foi uma adição especial para o Brasil. Ela entrou no lugar da música “Mother and Father” (2003), em que a Madonna homenageava os pais dela e do primeiro filho adotivo David Banda – mas acho que tinha um tom muito triste para o contexto do show em Copa.

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