Espetáculo intenso, com artistas permanencendo no palco até mesmo no intervalo, convidando o público a participar, a beber uma cachaça e provar uns snacks de frutos secos, a dançar com o elenco, a cantarolar um funk, um forró ou um tecnobrega, Cabaré Coragem finalmente chega a São Paulo. Em sua primeira montagem pós-pandemia, o Grupo Galpão resgata as suas origens de uma companhia que nasceu do teatro de rua, mais de 40 anos atrás na Praça Sete, em Belo Horizonte. Em 1 hora e 40 minutos, o encontro festivo e feliz potencializa a arte do contato, da fricção e, por que não, da ojeriza e do estranhamento.
Cabaré Coragem, que estreou em junho de 2023 no Galpão Cine Horto, tem clara inspiração no teatro do alemão Bertolt Brecht, dramaturgo dos mais influentes do século 20 e autor de mais de 50 peças, incluindo A Ópera dos Três Vinténs, Santa Joana dos Matadouros, Terror e Misério no Terceiro Reich, Os Fuzis da Senhora Carrar, bastante encenadas no Brasil. Os pontos de conexão são muitos, como a ideia de explorar questões sociais, políticas e econômicas, a procura por engajar o público de uma forma crítica e, evidentemente, a homenagem que se faz à protagonista Mãe Coragem e Seus Filhos.
Escrita durante o exílio de Brecht entre os anos de 1938 e 1939, e publicada em 1941, a personagem Mãe Coragem (Anna Fierling) é uma ambulante que vende produtos aos soldados durante a Guerra dos Trinta, na Europa do século 17. Não é uma heroína, mas alguém que toma decisões duras e até questionáveis para garantir a sobrevivência de si mesma e de seus três filhos. Ela simboliza muito do pensamento do dramaturgo em relação a um mundo marcado por injustiça e violência. Se para alguns as guerras são muito lucrativas, para a maioria é devastadora. Já o Grupo Galpão vai inverter Mãe Coragem, colocando-a no papel de uma dona de um cabaré, um inferninho de beira de estrada ou de qualquer outra paragem, que não tem o menor pudor em explorar seus funcionários.
O espetáculo, em cartaz no Sesc Belenzinho até 5 de maio, conta a história de exploração, expropriação do capital humano e da reiterada tentativa de ignorar os direitos dos trabalhadores. Parece a história da Humanidade, dito assim, mas o Grupo Galpão precisa explicitar isso em alto e bom som. A narrativa da peça é contada pelos funcionários de um cabaré decadente, prestes a fazer do ímpeto revolucionário algo mais do que um show a ser apresentado ao público. Há desde o ventríloquo que vê sua boneca se rebelar contra si – uma mordaz crítica ao capitalismo – até os acrobatas, as cantoras e as dançarinas insatisfeitos com os trocos que recebem.
“Traição” a Brecht
Se bebe na fonte de Bertolt Brecht, Cabaré Coragem vai além da inspiração e subverte conceitos e técnicas ensinadas pelo dramaturgo alemão. Afinal, o espírito de um bar no meio do palco é um convite para imaginar aquele espaço cênico como uma grande balada, onde pode se entrar e sair a qualquer momento. Há um flerte do Galpão com um espetáculo de diversão, entretenimento, justamente o oposto do que imaginava Brecht, que buscava criar um público consciente, crítico e sem grandes identificações com os personagens. Pode-se pensar numa “traição”, mas percebe-se consciência e intencionalidade sobre essa opção adotada pelo Galpão.
Pautado pela musicalidade, que já se faz presente na entrada do público e vai até o fim do espetáculo, Cabaré Coragem apresenta, tal como num show de variedades, as histórias de sonhos e derrotas de seus personagens. São histórias alegres, tristes e, todas, extremamente politizadas – porque, como lembra a banda Xibom Bombom, “é que o de cima sobe e o de baixo desce”. Em meio à pandemia, o Grupo Galpão mergulhou na obra de Brecht, e num desses encontros remotos surgiu a palavra “cabaré”. Foi o que bastou para acender o pavio criativo de uma companhia que trabalha colaborativamente na criação e concepção de suas montagens.
Ao perceber que a estética cênica seria mesmo de um bar, o diretor musical Luiz Rocha, que lidera a banda que está no palco, propôs que os integrantes escolhessem músicas preferidas para cantá-las. Outras foram introduzidas para expandir a dramaturgia. É o caso de Tango dos Açougueiros Felizes, música interpretada por Cida Moreira, que participou de experimentos cênicos da peça. A própria cantora é grande conhecedora da obra do dramaturgo alemão, e gravou o álbum Cida Moreyra Interpreta Brecht (1988). Há ainda Singapura, de Eduardo Dusek, e Eu Sou a Diva Que Você Quer Copiar, de Valesca Popozuda.
A direção de Cabaré Coragem é de Júlio Maciel, ator do grupo, mas que desta vez não sobe ao palco. A dramaturgia é considerada coletiva, mas teve supervisão de Vinícius de Souza. Completam a trupe Márcio Medina (cenários e figurinos), Rodrigo Marçal (iluminação) e, no elenco, Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia del Picchia, Simone Ordones e a dama do teatro Teuda Bara. O Galpão alterna entre encenar textos clássicos, como Os Gigantes da Montanha (2014), de Luigi Pirandello, ou adaptações de autores como Tchekhov (A Gaivota), Nelson Rodrigues e Manoel de Barros, referências para os espetáculos Nós (2019) e Outros (2016).
Cabaré Coragem. Com o Grupo Galpão. No Sesc Belenzinho, de quinta-feira a sábado (20h30) e domingo (18h30), até 5 de maio. Ingressos a 50 reais.