O dramaturgo Augusto Boal, preso e torturado pela ditadura militar brasileira em 1971, exilou-se na Argentina, no Peru e Equador, em Portugal e na França. Para o aparato da repressão, a arte desenvolvida por ele, Gianfracesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Flávio Migliaccio, todos integrantes do Teatro de Arena (fundado em 1953, em São Paulo), era subversiva demais. Peças como Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967), assinadas por ele e Guarnieri, apresentavam a luta de mártires brasileiros que incomodavam os poderosos de sempre. Interessado em buscar uma dramaturgia nacional, Boal incomodou muita gente naqueles anos sinistros. No exílio em Portugal, escreveu Murro em Ponta de Faca (1974), que nunca viu encenada no Brasil e agora está em cartaz no próprio Teatro de Arena.
“Em Portugal, outra vez me senti por demais sozinho – escrevi peça em que me via de longe: Murro em Ponta de Faca. Olhava distante, na bruma. Sentia o vento e o frio da viagem sem fim. Peça circular, nela não sou ninguém: sou todos, sou a que se mata e sou os sobreviventes”, escreveu Boal, no seu livro autobiográfico Hamlet, o Filho do Padeiro (2000). A peça chegou a ser montada em 1978 no Teatro de Arte Israelita Brasileiro, com direção de Paulo José e músicas compostas por Chico Buarque. Nos anos seguintes, circulou por cidades da França, Áustria e Alemanha, e foi remontada no Brasil em 2011.
Desta vez, no contexto dos 60 anos do golpe militar no Brasil, o Grupo Pedra Livre, sob direção de Kiko Marques, encara o desafio de montar esse texto simbólico da trajetória de Boal. Contemplado por um edital de ocupação da Funarte, o espetáculo mostra três casais de exilados que, apesar das diferenças, são obrigados a viverem juntos. Em cartaz até 28 de abril, Murro em Ponta de Faca é um texto-desabafo que reflete a vida de tantos brasileiros que foram obrigados a abandonar seu próprio País. “Exílio é meia morte, como prisão é meia vida”, disse Boal em sua autobiografia.
No elenco, Alex Huszar, Heitor Garcia Lima, Lara Arvati, Michelle Gabriolli, Miriam Madi e Warner Borges dão vida a brasileiros que não guardavam histórias conhecidas, como a de exilados famosos. Eles representam tipos como os intelectuais, os operários e os burgueses, e parecem estar sempre numa espera angustiante, em dias intermináveis. Há certo grau de animosidade entre eles, quando o que se esperaria era um sentimento de solidariedade e empatia. Mas cada casal carrega o seu passado, com as suas idiossincrasias.
A interpretação do Grupo Pedra Livre honra o texto do autor, que defendia as atuações naturalistas. Na pele, todos guardam, em maior ou menor grau, sentimentos dúbios em relação à pátria Brasil. Vivendo no Chile, estão sempre de malas prontas, ansiando por um retorno, mas conformando-se com apenas mais uma mudança. São seres impedidos de criarem raízes. Com o Teatro de Arena, hoje rebatizado com o acréscimo de Eugênio Kuznet no nome, Boal, Guarnieri, Oduvaldo e Migliaccio queriam se opor às encenações espetaculosas, de grande púbico, como os do então Teatro Brasileiro de Comédia, nos anos 1950 e 1960. Num Brasil do século 21 cooptado pelo teatro musical, Murro em Ponta de Faca traz também essa ironia embutida.