O haicai de Wim Wenders

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Sempre que Hirayama está dirigindo sua van, notamos que ele está no contrafluxo do trânsito. A pequena van segue numa pista livre, enquanto toda a outra pista parece tomada por um trânsito infernal, pela corrente sanguínea de carros em profusão. O contrafluxo é de fato o cerne de Dias Perfeitos (Perfect Days, filme de Wim Wenders): Hirayama, protagonista da história, movimenta-se na pista contrária à highway da modernidade, da tecnologia, da busca da realização social. Tanto é que ele só pronuncia a primeira palavra após quase uma hora de narrativa. Portanto, não é exatamente um filme para espectadores apressados, feito para atiçar cineastas em competição acelerada ou para premiar resenhas açodadas. Esse é o susto inicial, já que não são mais tão comuns os filmes no contrafluxo.

The Tokyo Toilet é um serviço que existe de fato no bairro de Shibuya, em Tóquio, e que atende à manutenção de 17 banheiros públicos. O espartano Hirayama (Kōji Yakusho) é um funcionário que se dedica a limpar esses banheiros. Sua vida se passa em uma rotina rigorosa: acorda sem despertador muito cedo, ao ouvir o som de uma vassoura de palha varrendo a calçada do outro lado da rua. Borrifa com água os vasos com os brotos de plantas que recolhe nos parques de Tóquio na hora do almoço; veste o macacão de brim do uniforme e separa moedas de um pires de lata que mantém na porta de casa; depois, toma café em lata de uma vending machine daquelas que existem às milhares em Tóquio e carrega os equipamentos de limpeza, os esfregões e os baldes, para a pequena van que dirige pela metrópole.

De início, o que o filme nos deixa saber sobre Hirayama é nesse ritmo de repetição que enfatiza um comportamento quase que de infância, quando a repetição e a descoberta contínua de pequenos fenômenos circunscrevem o fundamental. Descobrimos que ele adora olhar para o céu e para as folhas das árvores, que é metódico ao extremo e que insiste em deixar os banheiros imaculadamente limpos – não lhe importa muito o destino seguinte de um vaso sanitário, ele tem uma missão e vai cumpri-la a qualquer custo. Ele não tem chuveiro em casa e se lava numa casa de banhos coletivos. Almoça sempre no mesmo lugar, come sempre a mesma coisa, no mesmo banco de praça ou na mesma mesa. Numa primeira análise, trata-se de um evidente expoliado, um lúmpen da sociedade capitalista, o mais baixo tijolinho da pirâmide do êxito (o que justificaria imediatamente todos os “invisibilizados” nos textos críticos).

Aí entram em cena os artefatos culturais. No início, antes de dormir, Hirayama está sempre lendo Palmeiras Selvagens, romance de William Faulkner (1897-1962), clássico norte-americano de 1939. Parece até um “furo” de roteiro: um limpador de latrinas que lê Faulkner, Patricia Highsmith (1921-1995) e Aya Koda (1904-1990) e também ouve, em fitas cassetes originais, um repertório hipster e irrebatível de canções (sem escorregadelas de bom gosto): Lou Reed, Van Morrison, Nina Simone, The Kinks, Otis Reding. Mas Hirayama tem um passado. E, embora esse passado não interesse para a compreensão do presente, permite a intervenção do cineasta: além da música, o personagem também se abastece de literatura e fotografia, o que garante que sua vida nada tenha de miserável.

Fui procurar algum texto crítico sobre Palmeiras Selvagens de Faulkner e encontrei um do escritor Cristóvão Tezza, e fiquei maravilhado com a simetria de sua sinopse com o percurso de Hirayama:

“Uma tragédia no sentido clássico do termo, na medida em que a vontade humana, no universo de Faulkner, será sempre uma pálida intenção, uma cegueira, um tatear perdido em meio à força avassa­ladora do destino. A escolha, para ele, é a realização de uma teimosia, de uma insistência, de uma obstinação secreta e indevassável – não há, de fato, escolha alguma”.

Vivendo uma vida que se enraiza nos ritmos da infância, na repetição permanente, Hirayama alcança também um estado de mediação de rara permeabilidade entre os sentimentos de um homem e de uma mulher. Assim, não é surpresa que seus encontros mais modificadores se deem com mulheres – as garotas Niko (Arisa Nakano) e Aya (Aoi Yamada) e a irmã, Keiko (Yumi Asō, numa assombrosa participação de pouco mais de dois minutos num filme).

Ao ritmo de vida de Hirayama corresponde um ritmo de vida também de um outro mundo que persiste nas dobras da hipercompetitividade online: a atendente de um sebo que vende livros de 1 dólar e fornece dicas autorreferentes sobre os autores; o estúdio de revelação de filmes de câmeras fotográficas analógicas; a barwoman que canta, a pedidos, para os boêmios sentimentais da noite. Não são apenas as fitas cassete que fazem sua gloriosa passagem para um mundo de esquecimento, mas também a tecnologia dos afetos, dos refúgios afetivos.

É um filme-haicai, na sua iluminada concentratividade. Haikai é definido como uma forma de poesia que foca em um breve momento do tempo, com um senso de repentina iluminação e compreensão. O mais conhecido haicai de Bashô (1644-1694), o poeta dos poetas japoneses, A Rã, diz simplesmente assim (na tradução de Paulo Leminski de 1983):

velha lagoa
o sapo salta
o som da água

Hirayama, entretanto, não é um monge. Tem capacidade de indignação, é passível de descontrole emocional, ciúmes, todos os altos e baixos da natureza humana. Mas tem a alma aberta ao maravilhamento, ao lúdico, seja jogando um jogo da velha com um adversário anônimo ou apreciando a simetria das almas dos meninos.

Dias Perfeitos parece buscar sua força também na cinematografia japonesa de contrafluxo. É impossível não comparar Hirayama e sua coleção de brotos de árvores com Dersu Uzala, o personagem de consciência ambiental de Akira Kurosawa. E também na filosofia zen. A definição clássica do zen é a seguinte: “Relaxado e sem preocupação com as coisas que não se pode mudar”. E ainda na dança butô, com a participação do célebre bailarino Min Tanaka, de 79 anos, no papel de um sem-teto que coreografa seu movimento pelas ruas da grande cidade. “Eu não danço num lugar; eu danço O lugar”, diz Tanaka.

Só vê quem tem olhos de ver. Só enxerga quem tem olhos de enxergar. E nem mesmo essa capacidade vai te proteger da grande tragédia humana, que é a de presenciar tudo e ter de escolher por vezes a cruel neutralidade, decidir até onde priorizará a sanidade em suas intervenções, o limite da autopreservação. Então, Hirayama chora. Mas também ri, porque a vida é imensa, e é maior ainda quem tem a capacidade de reconhecer isso.

PLAYLIST PERFECT DAYS

The House of the Rising Sun (The Animals)

Pale Blue Eyes (The Velvet Underground)

(Sittin’on) The Dock of the Bay (Otis Reding)

Redondo Beach (Patti Smith)

(Walkin’ Thru The) Sleepy City (The Rolling Stones)

Perfect Day (Lou Reed)

Aoi Sakana (Sanchiko Kanenobu)

Sunny Afternoon (The Kinks)

The House of the Rising Sun (Maki Asakawa)

Brown Eyed Girl (Van Morrison)

Feeling Good (Nina Simone)

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