Os amores, o sorriso e a flor no cabelo de Maria Creuza

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A diáspora mundial da bossa nova se deu inicialmente em duas direções: em 1962, no Carnegie Hall, em Nova York, Tom Jobim e João Gilberto encabeçaram a grande conquista dos públicos anglossaxões. Daquela aventura, assomou uma nova diva da bossa, a então mulher de João Gilberto, a baiana Astrud Gilberto (1940-2023). Em 1970, em Buenos Aires, Argentina, o poeta, diplomata, compositor e cantor Vinicius de Moraes (1913-1980) pilotou uma versão compacta daquela expedição bossanovista: uma investida hispânica com um show e um disco em um bar de boêmios no Barrio Norte, a boate La Fusa (instalada na Galeria Capitol da Avenida Santa Fé, entre a Callao e a Riobamba). Dessa aventura, destacou-se a voz cristalina de outra estrela da bossa, a cantora também baiana Maria Creuza, então com 21 anos. O disco Vinicius de Moraes en La Fusa con Maria Creuza y Toquinho, que Vinicius gravou, acompanhado por Toquinho e Maria Creuza, é tido até hoje como um dos discos de música brasileira mais vendidos na Argentina, e Maria Creuza se tornou uma estrela na terra do tango. 

Com os desaparecimentos de Nara Leão, Elizeth Cardoso, Doris Monteiro, Sylvia Telles, Maysa e Astrud Gilberto, é possível afirmar que Maria Creuza Silva Lima, a baiana de Esplanada de flor no cabelo que encantou Vinicius ao mergulhar a bossa numa certa infusão afro, é hoje uma das últimas divas da bossa nova ainda em atividade. Maria Creuza, que completa 80 anos neste dia 26 de fevereiro, mora há décadas em Buenos Aires, capital do país que a acolheu artisticamente nos anos 1970, roubou seu coração (ela se casou há 40 anos com o pianista cordobés Victor Díaz Vélez, com quem vive em Buenos Aires) e onde desenvolveu grande parte da carreira na música. 

Preparando uma autobiografia e um retorno aos palcos neste ano, Maria Creuza cuida de um problema de saúde e, após dois anos longe, retorna ao Rio de Janeiro no final deste mês de março, comecinho de abril, e sonha enfim poder ir receber uma homenagem na pequena Esplanada (a 166 km de Salvador), sua terra natal. A prefeitura local concedeu a Creuza, em junho de 2022, o título de Patrimônio Artístico e Cultural Vivo da cidade, por sua contribuição à cultura. “Veja que coisa mais bonita! Mas a pandemia complicou muito a minha vida para viajar para o Brasil”, lamentou a cantora, em entrevista exclusiva. A última vez que se apresentou em público foi em 2019. “Se Deus quiser, vou ter a sorte de ir agora, eles estão me esperando. Uma das coisas mais gratificantes é a gente receber em vida esse tipo de homenagem”, anunciou.

No auge de sua aventura com Vinicius e Toquinho, Maria Creuza foi saudada com reverência por todo o planeta. “Una ragazza stupenda dalla pele ambrata di mulatta” (“uma garota estupenda de pele âmbar de mulata”), escreveu o periódico italiano Il Tempo, e o La Notte identificou nela “la voce calda e nebbiosa” (“a voz quente e enevoada”). O jornal francês Le Figaro cravou que a voz da cantora brasileira era “doce, sensual” e representava “a própria essência do canto”. O France Soir registrou que ela quebrou, em uma apresentação em Paris, “a incomunicabilidade dos espectadores do Olympia” e que representava “uma das mais belas vozes do Brasil”. 

“A Creuza teve uma importância muito grande a partir daqueles shows que ela fez com Vinicius”, relembra o produtor, compositor, arranjador e cantor Roberto Menescal, um dos papas da bossa nova. “Ela divulgou muito nossa música na Argentina. E estourou na Argentina. Eu tive a felicidade de produzir dois discos dela para a Som Livre, na ocasião, e que foram muito bem aqui também. Ela teve uma importância muito grande aqui no Brasil também. Aliás, esses discos que eu produzi dela na Som Livre foram muito bem de venda também, um dos discos tinha até o nome da música do Chico Buarque com o Cristóvão Bastos: Todo Sentimento. Depois ela foi morar na Argentina, então não posso dizer nada, mas ela, assim como Astrud (Gilberto), que foi para os Estados Unidos e vendeu a nossa música lá, foi aqui para a Argentina e pegou um público muito bom, e ficou sozinha nisso, né? Uma pessoa muito legal, a gente teve uma relação muito boa.”

Na época em que conheceu o argentino Vélez, Maria Creuza era casada com o compositor Antonio Carlos Marques Pinto, da dupla Antonio Carlos & Jocafi. A dupla começou a ficar conhecida em 1969, quando inscreveu a composição “Catendê” em um festival de música popular brasileira. Maria Creuza era a intérprete. A fama nacional veio em 1972, com a  composição “Você Abusou”, também de Antonio Carlos e Jocafi, uma das músicas mais tocadas no Brasil durante anos e que projetou o nome da cantora brasileira para muito longe. “Você Abusou” foi gravada em espanhol e japonês, além de ganhar interpretações de Stevie Wonder, Célia Cruz e Sergio Mendes. Hit internacional, causou espanto quando, na França, surgiu uma versão sem crédito de “Você Abusou”, “Fais Comme l’Oiseau”, interpretada pelo cantor Michel Fugain e sua banda Le Big Bazar. Fugain simplesmente registrara a versão em francês em seu próprio nome. FAROFAFÁ conversou com Maria Creuza.

Jotabê Medeiros: Nos anos 1960, você vivia em Salvador, tinha um programa de TV. Como resolveu sair para conquistar o mundo?

Maria Creuza: Fui muito pequena para Salvador com minha mãe, após a separação dos meus pais. Foi aluna do Colégio Ypiranga, onde estudou Jorge Amado, um dos alunos ilustres, e de quem fiquei amiga, anos depois. Em Salvador, frequentava o Teatro Vila Velha, que já era um reduto de jovens que queriam se destacar nas artes, e onde conheci Caetano, Bethânia. Com 16 anos, já estava fazendo curso de teatro. Queria ser atriz. Um amigo praticamente me forçou a participar de um concurso na TV Itapoã, e ganhei o primeiro lugar. Foi aí que me deram um programa. Não sabia se ia ser atriz ou cantora, mas acabei cantando no palco e, por curiosidade, minha primeira interpretação foi com Dindi, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira.

JM: Como acabou indo parar no ciclo de influências dos bambambãs da bossa nova?

MC: Quando eu estava nessa ainda de idas e vindas, resolvendo se ia sair mesmo de Salvador, que era meu reduto, claro, por causa do programa, que foi batizado de Encontro com Maria Creuza e tinha muito sucesso na época, continuei tendo outras experiências. Me convidaram para fazer uma participação no Festival Universitário da Canção, na extinta TV Tupi, em 1969. Antes, em 1967, eu já tinha participado de um festival, aquele famoso Festival da Record que o nosso Sérgio Ricardo jogou o violão na plateia, e foi aquela loucura. Eu participei com um tema de inspiração africana, muito, muito típico baiano, uma das primeiras canções de Antonio Carlos, que estava começando, era meu namorado na época, e a gente terminou se casando, claro, como todo mundo sabe. A música era “Festa no Terreiro de Alaketu”. Participei e a música foi classificada, mas perdeu justamente para a canção de Sérgio Ricardo, imagine você, que eu acho que se chamava Beto Bom de Bola. Bom, a partir daí voltei para Bahia. E só retornei com outro convite, agora para o Festival Universitário da Canção, no ano de 1969, que veio a definir o meu destino.

JM: Foi a partir daí que se deu o seu encontro com Vinicius de Moraes?

MC: Eu participei do festival cantando “Mirante”, justamente com o autor, Cesar Costa Filho, que a fez em parceria com Aldir Blanc, o nosso inesquecível Aldir. Foi um sucesso, foi uma maravilha para mim, tirou o terceiro lugar, se eu bem me lembro, e era nos moldes do que fez Edu Lobo com a Marília Medalha, o compositor e a cantora participarem juntos. Foi aí que Vinicius me viu. E depois me contou que ficou encantado. E você sabe como é que é, né, vocês ajudam muito com as coisas que publicam. Queriam saber onde eu andava, quem era essa baiana que estava recém-chegando ao Rio de Janeiro. Vinicius me procurou, ouviu pessoas, procuraram Nelson Motta e finalmente deram com meu telefone Eu estava começando a morar em Copacabana. E então ele finalmente ligou para mim. Eu não queria acreditar quando ele disse que era Vinicius. Uma das primeiras coisas lindas que ele me disse, de tantas que ele me falou no decorrer de todos esses anos que tive a alegria de trabalhar e conviver com ele, foi que estava encantado comigo e procurava uma voz como a minha.

JM: E o que tinha na sua voz que a destacava?

MC: É que eu tinha um detalhe que o conquistou. Ele disse: “Mariazinha…”. Já com intimidade, né? “A sua voz me acaricia, eu não quero perder a oportunidade de te convidar para fazer um trabalho, viajar comigo. Enfim, se você topar…”. Claro, imagina se eu não toparia. E aí começou a minha saída do Brasil.

JM: Mas as portas se abriram na Argentina e no Uruguai primeiro, e de forma definitiva, não?

MC: Na verdade, depois de fazer aquele disco Vinicius de Moraes en La Fusa, aqui em Buenos Aires, um sucesso até hoje, um ícone da música, o mais vendido de todos os tempos nesse repertório de bossa nova, e que me definiu como cantora, me fez abrir tantas portas ao mesmo tempo, tudo mudou. Eu também tive a chance através de “Você Abusou”, fui para o Japão para participar de um outro festival lá. E tudo isso foi marcando a minha carreira e minha definição de cantora. Na verdade eu ficava mais fora do Brasil do que dentro. Isso, por outro lado, me prejudicou, porque muitas vezes deixei de participar de certas coisas no Brasil. Eu não podia fazer as duas coisas ao mesmo tempo e sempre estava fora, havia muito convite para o exterior, para o mundo inteiro. Foi uma época maravilhosa. Levei dez anos viajando com Vinicius e Toquinho. Até que ele ficou doente, então cada um de nós foi tentando fazer apresentações sozinhos, né? Tanto eu quanto Toquinho.

JM: E aí Vinicius morreu…

MC: Até o dia em que nosso Vina nos deixou… Meu Deus do céu, parece incrível… Esse legado extraordinário dele marcou para sempre a música brasileira. Existe um antes e um depois de Vinicius de Moraes. Tom Jobim, meu amigo, que na verdade, quando eu contava para ele que eu cantava “Dindi” em homenagem a ele, fazia aquela cara maravilhosa e dizia: “Maria Creuza, minha cantora, aí tem um problema sério: você é casada com a dupla e ainda tem Vinicius de Moraes atrás de você, não sei o que que eu vou fazer para te conquistar”. Coisas assim, né? Essas bobagens lindas que a gente ouvia naquela época. Tudo conquistador, todo mundo mulherengo. Então foi uma época linda linda linda.

JM: Vinicius deixou alguma composição dedicada a você?

MC: Música dedicada a mim não, não posso te dizer isso porque não tem. O que tem, sim, são comentários maravilhosos, como quando gravei “Onde Anda Você”, que era de parceria com um médico amigo meu lá da Bahia, que na verdade foi uma das poucas parcerias de Vinicius fora dos parceiros costumeiros dele, né? Que na época ele fazia muito trabalho com Toquinho, entendeu? E ele compôs justamente “Onde Anda Você”, um dos meus maiores sucessos, em parceria com Hermano Silva, que não tinha nada que ver com a turma, foi uma casualidade porque se encontrava muito com a gente lá em Itapuã.

JM: Você era muito paquerada?

MC: Na época da famosa “Tarde em Itapuã”, Vinicius conheceu a baiana com que se casou, a Gessy, e por causa disso nós ficamos muito amigas. De todas as mulheres de Vinicius que eu conheci, ela foi uma comadre querida, madrinha da minha filha, eu tenho três filhos, dois rapazes e uma moça. E ele fez para ela “Morena Flor”, com Toquinho, e eu brincava muito dizendo que a música era para mim também porque eu usava flor no cabelo – que, aliás, todo mundo imitou na época. E a letra no final dizia: “Acontece que a Bahia fez você todinha assim só para mim”. Na verdade, o recado era para Gessy, não era para mim, também baiana, que não fui mulher dele, fui amiga, comadre, tudo. Muita gente na época tinha uma grande dúvida, pensando que eu também era candidata a mulher do Vinicius. Imagine você, nada a ver. Inclusive porque eu já tinha meu marido, que era o Antonio Carlos, e realmente não foi por aí. Vinicius foi meu querido inesquecível, meu anjo da guarda, meu mestre.

JM: Quando você conheceu o pianista argentino com quem se casou?

MC: Meu primeiro marido foi Antonio Carlos, de Antonio Carlos & Jocafi. Isso todo mundo já conhece. O meu segundo marido, com quem continuo casada, já faz 40 anos que continuo aqui na Argentina com ele, e é por isso mesmo que muitas vezes fico muito tempo aqui, é músico, pianista, maestro, compositor, e trabalhou muitos anos em teatros aqui da Argentina. Ficou muito famoso, se chama Victor Días Vélez, um músico excepcional. Eu o conheci justamente por causa de uma falta que tive há 40 anos de um músico aí do Brasil, Leonardo Bruno. Leonardo não pode me acompanhar em um show, era ele quem fazia meus arranjos na época das gravações com o Rildo Hora, na RCA, nos meus primeiros discos. Eu o tinha convidado para que me acompanhasse em uma temporada aqui, nessas idas e vindas que eu tinha na Argentina. Isso foi no ano de 1979 para 1980, uma coisa assim. E aí convidaram o Victor. Um amigo meu, que era baterista aqui em Buenos Aires, brasileiro, e conhecia o Victor porque trabalhava com ele em obras musicais aqui nos teatros, o indicou. Quando eu avisei o produtor que Leonardo não podia vir, botaram a mão na cabeça, né? Porque quem é que ia me acompanhar aqui com bossa nova? Não dava mais tempo. Então tinha que colocar um substituto à altura que conhecesse essa obra de Vinicius e Jobim, para poder me acompanhar nos shows que eu já tinha tudo marcado aqui no verão.

E então, através desse baterista brasileiro que morava aqui havia muitos anos, o Roberto César, que comentou com o produtor que o Victor conhecia música brasileira e podia me acompanhar. E assim foi. A gente se conheceu exatamente em Mar del Plata, já no teatro, na véspera do show. Foi uma loucura porque era assim tudo improvisado, com um músico que eu não conhecia… Mas, graças a Deus, deu tudo certo. Destino, né? Destino mesmo, coisa que a gente acredita. E até hoje. Essa foi a situação – nunca imaginei que eu iria casar de novo. Nem imaginei que ia durar tanto, e essa é a verdade, né? A verdade mais linda da minha vida. E hoje sou amiga do meu ex-marido Antonio Carlos, muito amiga, muito querido, por mim e pelo meu marido atual, porque eles se conheceram depois de alguns anos, depois que passou toda aquela bronca, chegaram à conclusão que um estava cuidando da vida do outro e ele agradecia, Antonio Carlos, a oportunidade que eu tive de escolher uma pessoa, também músico, com essa sensibilidade especial que ajudou a criar meus filhos com Antonio Carlos, entende? Então ficamos amigos para o resto da vida, essa é a história. É por isso que até hoje estou com esse vínculo na Argentina. Com a família que Victor me deu de presente, e também porque ele me ajudou a criar meus três filhos. Essa é a verdade, entendeu? É uma história muito linda, vamos botar isso num livro, não é não?

JM: Quem foi sua maior inspiração como cantora?

MC: Depois que comecei minha trajetória como cantora, após ter abandonado o curso de atriz e passado a me dedicar mais à música, foi com o repertório de Maysa o início. Cantava muito também os repertórios de Sylvinha Telles, Claudette Soares. Algum tempo depois, Maysa e eu cantaríamos juntas na mesma boate, a Igrejinha, em São Paulo. Convivi com ela um tempo, no camarim, um momento muito forte para mim, uma experiência. Ela terminou gravando “Você Abusou”, que foi um dos meus maiores sucessos, de Antonio Carlos (& Jocafi). São pessoas que marcaram minha vida. Como Elis, minha querida Elis Regina, de quem fui amiga, pisciana como eu e uma figura realmente importante.

JM: Você se lembra quando houve o plágio de “Você Abusou” na França?

MC: Sim, lembro perfeitamente. Michel Fugain simplesmente pegou “Você Abusou”, pôs um título em francês, “Faça Como um Pássaro”, que não tem absolutamente nada a ver. Isso acontece muito na música, infelizmente. Antonio Carlos e Jocafi entraram na Justiça e ganharam.

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