Indo bem além da festa e do folguedo, o professor e doutor em direito pela USP Guilherme Varella antecede o carnaval de 2024 com uma obra de vulto, que proporciona uma visão panorâmica sobre o fenômeno que transformou o carnaval paulistano na última década. Lançado pela editora Alameda, o livro Direito à Folia – O Direito ao Carnaval e a Política Pública do Carnaval de Rua na Cidade de São Paulo é fruto de tese de doutorado do autor, mas transcende a linguagem técnica e jurídica e adentra em temas de grande impacto na vida cotidiana de quem vive na cidade de São Paulo – e no Brasil em geral.
O aspecto híbrido do livro se explica pela história individual de Varella: para lá dos títulos profissionais pomposos, ele é também folião carnavalesco, integrante do bloco paulistano Saia de Chita, que passeia pelo bairro da Pompeia nos meses de fevereiro desde 2007. Seu envolvimento no tema que estuda é maior ainda: como gestor público, o autor participou da revolução carnavalesca liderada a partir de 2013 pelo prefeito paulistano Fernando Haddad, deflagrada pelo então secretário municipal de Cultura, o baiano Juca Ferreira. Direito à Folia analisa minuciosamente (por vezes obsessivamente) o passo a passo das políticas públicas que fizeram o carnaval de rua de São Paulo saltar, em menos de uma década, de cerca de 50 para mais de 600 blocos na rua e de quase zero para 15 milhões de cidadãos brincando carnaval livremente nas quase sempre hostis ruas paulistanas.
Partindo da ótica jurídica, Varella chega ao conceito de direito ao carnaval, alinhavando com habilidade o carnaval à cultura, os direitos culturais aos direitos humanos e fundamentais, o direito de brincar carnaval ao gozo pleno da cidadania, o carnaval ao direito pleno à cidade e assim por diante. Depois de traçar um panorama histórico sobre o carnaval brasileiro e paulistano, ele descreve o “antimodelo” político que a Prefeitura de São Paulo perseguiu para a cultura e para o carnaval até o ano de 2013.
Vigorava, com intensificação repressiva em gestões como as de José Serra e Gilberto Kassab, uma criminalização silenciosa do ato de usufruir das ruas no carnaval. Em geral, as gestões transferiam aos blocos a responsabilidade pública pelo funcionamento da festa (privatizando-a, portanto) e colaboravam para afugentar foliões das ruas e cidadãos da cidade durante o feriado. Um número reduzido de blocos recebia subsídios sem regras transparentes, constituindo uma clientela complementar à do carnaval de sambódromo, à qual não interessava qualquer tipo de mudança na condução dos festejos.
Varella mostra que o modelo de carnaval circunscrito foi se desenvolvendo nos anos de ditadura civil-militar, em atos como o do prefeito José Vicente de Faria Lima, que nos anos 1960 fixou a responsabilidade de gestão do carnaval na pasta do Turismo (ou seja, o carnaval paulistano era menos para a população paulistana que para inglês ver), ou a inauguração do Sambódromo do Anhembi, em 1991, um projeto do conservador Paulo Maluf, mas inaugurado, por ironia, na gestão da progressista Luiz Erundina. Também ironicamente denominado Polo Cultural e Esportivo Grande Otelo, o modelo de sambódromo progressivamente segregou (inclusive racialmente), confinou e privatizou o carnaval paulistano, sempre sob a retaguarda da Rede Globo (que passou a transmitir os desfiles das escolas de samba de São Paulo em 1996).
A troca de paradigma depois de longo período iniciou-se imediatamente após a posse de Haddad, em janeiro de 2013, quando o autodenominado Manifesto Carnavalista exigiu do prefeito recém-eleito a (re)democratização e a descriminalização do carnaval paulistano, até então compreendido pelo poder público municipal como “ameaça à ordem pública”.
Varella expõe como prefeitos como Serra e Kassab agiam por omissão, deixando de formular políticas públicas e valendo-se de normas sobre “eventos temporários”, que inviabilizavam a formação espontânea de blocos ao exigir alvarás, altas taxas e entraves burocráticos a quem quisesse organizar desfiles e brincadeiras de rua.
“A operação burocrática dos eventos temporários, que levava ao impedimento do carnaval de rua, não era ocasional, tampouco casual ou eventual. Era uma ação deliberada, realizada pelos estratos burocráticos, voltada ao atendimento de uma diretriz política mais ampla”, escreve o autor.
Em reação ao Manifesto Carnavalista (e em conexão com o programa eleitoral do PT, vitorioso nas urnas), o secretário Juca Ferreira orientou o afrouxamento imediato dos impedimentos à folia de rua, subsidiando, por exemplo, as taxas que os blocos tinham de pagar ao departamento de trânsito e orientando a suspensão de medidas de repressão policial. As comportas estavam abertas.
Já no início do ano seguinte, 2014, antes do período festivo, publicou-se o chamado Decreto do Carnaval de Rua, que proibia expressamente a privatização da festa de rua. Pelas novas diretrizes, não poderiam ser utilizadas “cordas, correntes, grades e outros meios de segregação do espaço que inibam a livre circulação do público, permitindo-se o uso de vestuário distintivo que apenas identifique o respectivo grupo, sem que se constitua em elemento condicionante à participação”. Egresso da experiência de Salvador, Ferreira vacinava o (re)nascente carnaval paulistano de rua contra o que aconteceu em Salvador (com proliferação de abadás pagos para participar dos eventos e privatização de espaços públicos no carnaval de trios elétricos).
O decreto de Haddad criou um cadastro único voluntário para os blocos – eles não eram obrigados a se inscrever para poder sair às ruas, mas se o fizessem colhiam benefícios (como apoio em questões de trânsito e segurança, instalação de banheiros químicos etc.). A medida favorecia o planejamento de ações da prefeitura, em função dos blocos e trajetos apresentados (o respeito à vinculação comunitária e territorial de cada iniciativa). Somadas as iniciativas de desrepressão, a explosão do carnaval de rua foi instantânea, indomável e exponencial, restando como resíduo positivo do clima político que levou multidões às ruas em 2013, nas chamadas jornadas de junho.
“São Paulo vai ser o maior carnaval de rua do Brasil, ó o que estou dizendo. Maior e melhor”, afirmava o já ex-secretário e então novamente ministro da Cultura Juca Ferreira em 2016, em entrevista a este jornalista e a Jotabê Medeiros, publicada por FAROFAFÁ (e documentada no livro Direito à Folia).
Surpreendentemente (ou talvez não), as políticas instauradas nesse período sobreviveram às ondas golpistas e ao crescimento da extrema direita dos anos seguintes, uma evidência eloquente de que, segundo Varella, as políticas implementadas não eram de um determinado governo ou orientação ideológica, mas antes políticas de Estado potencialmente duradouras.
Prova disso é que a covid-19 interrompeu o carnaval de rua (em 2021), mas nenhum dos prefeitos conservadores pós-Haddad (João Doria, Bruno Covas e Ricardo Nunes) o fez de lá para cá. Nessa conta entra o impacto econômico da festa pública e gratuita, calculado em R$ 2,7 bilhões em 2020 (esse impacto passou a ser medido em 2017, quando o retorno havia sido estimado em R$ 314 milhões). Outro fator decisivo (inclusive sobre a popularidade de cada prefeito) é a legitimidade de que o carnaval de rua rapidamente se revestiu: ainda em 2016, pesquisas mostravam que 98% dos paulistanos defendiam a permanência do apoio da prefeitura ao carnaval de rua em São Paulo.
Nos anos de recrudescimento antidemocrático pós-golpe de 2016, houve vaivéns, como a transferência da coordenação do carnaval da pasta da Cultura para a Secretaria de Prefeituras Regionais (instituída em 2017 e revogada em 2019), a volta da cobrança de taxas e a burocratização (o cadastro dos blocos passou a ser obrigatório) e a tentativa de reconfinamento dos desfiles de rua (em avenidas expressas como a 23 de maio), todas movidas por Doria.
Varella menciona também a voracidade progressiva de patrocinadores privados, permitidos desde a gestão Haddad, num processo que nomeia como “ambevização” do carnaval, numa analogia com a deterioração de serviços relações trabalhistas conhecida como uberização – nesse caso, promovida pela sanha monopolista do conglomerado de cervejarias Ambev. À parte os contramovimentos, os blocos seguem crescendo, e só interromperam atividades em 2021, devido à pandemia – e, segundo Varella, por decisão própria, sem intermediação da Prefeitura (ao contrário do que aconteceu com o carnaval de escolas de samba).
O autor demonstra que o “antimodelo”, além de sabotar o direito cidadão às ruas, à cultura e ao carnaval, tende a aprofundar o caos inerente ao período de folia, em vez de contê-lo. Com a obrigatoriedade do cadastro, afirma, cresceu o número de blocos clandestinos, que, sem cadastrado, ficam de fora do planejamento de infra-estrutura da prefeitura, causando piora nas condições de trânsito, limpeza, segurança pública e assim por diante.
À parte a importância do trabalho teórico e jurídico oferecido por Direito à Folia, o livro é especialmente saboroso em sua primeira parte, quando historiciza o carnaval e remonta à sua constituição no Brasil e no mundo. Lembra, por exemplo, que quem involuntariamente propulsionou o carnaval, em tempos medievais, foi a Igreja Católica, ao decretar as privações da Quaresma – em reação, a população instituiu o carnaval, o excesso, a “terça-feira gorda” antes do início do período abstêmio. (O binômio sagrado/profano parece se repetir ciclicamente, por exemplo quando a transgressora Festa da Chiquita brota de dentro do católico Círio de Nazaré, em Belém do Pará.)
Tomando como ponto de partida a marchinha “História do Brasil”, composta por Lamartine Babo em 1933 (“quem foi que inventou o Brasil?/ foi seu Cabral, foi seu Cabral/ no dia 22 de abril/ dois meses depois do carnaval”), Varella passeia pela formação complexa do carnaval à brasileira: “O carnaval ocupa tamanha importância no corpo social que parece ter precedido a própria ‘invenção’ do Brasil”. É uma das falhas do trabalho, que pensa o Brasil pós-cabralino, subestimando a colossal participação da sabedoria e da tradição indígena na formulação da “maior festa do mundo”, como se gosta de nomear o carnaval de Pindorama.
Em outro sentido, Varella afasta hipóteses de intervencionismo estatal na regulamentação do carnaval, com que as direitas costumam tentar estigmatizar políticas progressistas. De acordo com sua defesa (e a da gestão Haddad), o Estado deve se fazer presente, mas não de maneira hipertrofiada (como acontece, sem alarido, no carnaval de sambódromo, amplamente subvencionado e controlado pelo poder público). Para o autor, a institucionalização dos desfiles de escolas de samba “demonstra claramente o risco de domesticação dos grupos carnavalescos quando há exacerbada presença do Estado, desimbuída da premissa de preservação e valorização cultural do carnaval”.
Varella reflete sobre o progressivo confinamento do carnaval durante a ditadura e a redemocratização, que pouco a pouco marginalizou e criminalizou os blocos e o carnaval de rua (não apenas em São Paulo), em fenômeno cíclico que se reproduz desde a repressão ao samba, ao candomblé, à capoeira, mais tarde ao hip-hop, ao funk… “A leitura focada nas escolas marginaliza, desconsidera ou subdimensiona o pensamento social atinente ao carnaval de rua”, afirma a certa altura, deixando entrever como o carnaval espontâneo de rua tende a ser arredio ao enquadramento pela mídia, em contraste com o “espetáculo” dos grandes desfiles moldados pela televisão para serem usofruídos do sofá, de dentro de casa, longe do contato humano real e direto.
Ondas repressivas à parte, o carnaval de rua segue sendo por excelência o avesso da domesticação, por enquanto e ao longo de décadas e séculos. Em 2024, a batalha (de confete) está nas ruas mais uma vez, e a leitura de Direito à Folia ajuda a compreender e, portanto, a viver melhor o impacto do carnaval sobre a cidade, a cidadania, a cultura e a sanidade individual de cada um de nós.
Direito à Folia – O Direito ao Carnaval e a Política Pública do Carnaval de Rua na Cidade de São Paulo. De Guilherme Varella. Alameda, 2024, 452 pág., R$ 119.