Chegou ontem (30) às plataformas digitais, Todo Lugar É Aqui” (Selo Circus, 2024), o novo álbum da Orquestra Mundana Refugi, que congrega 22 músicos de diversas partes do planeta em uma formação que amalgama e transcende suas próprias culturas. O show de lançamento acontece nesta quinta (1º. de fevereiro), às 19h, no Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000, Liberdade, São Paulo), com entrada franca.
Em 10 faixas, os músicos, entre brasileiros, imigrantes e refugiados, passeiam por gêneros como samba, xote, flamenco, tarantela e música andina, entre outros. O Brasil está representado por “A Violeira”, lado b de Chico Buarque, e o ultraclássico “Canto das Três Raças”, sucesso de Clara Nunes (1942-1983), de autoria de Mauro Duarte (1930-1989) e Paulo César Pinheiro, em releituras inspiradas e particularíssimas.
Além destas, em faixas como “Amêndoas Verdes”, um hino da causa palestina, a tarantela “Taranta” e “Sardinia Mémories”, do ugandense Geoffrey Oryema (1953-2018), que evoca a sonoridade cubana do Buena Vista Social Club, além da “Suíte dos Povos”, música tradicional do Tibete sugerida pelo representante chinês da orquestra, demonstram a versatilidade e a riqueza do supergrupo.
As políticas da orquestra são a alteridade e o amor – pela música, pelo próximo, pela cultura do outro. Uma valorosa lição que mostra que é possível são preferíveis a arte e a cultura a guerras estúpidas (redundância intencional) e genocídios, vide Rússia e Ucrânia ou Israel e Palestina.
Todo Lugar É Aqui conta com Carlinhos Antunes (violão, viola, charango, ronrono e ngoni), Abou Cissé (djambé), Beto Angerosa (conga, derbak, pandeiro, agogô, cajón, tamborim, pandeirão, efeitos, caxixis, bongô, bombo leguero), Chadas Ustuntas (duduk e alaúde), Cláudio Kairouz (kanoun), Daniel Muller (acordeom), Danilo Penteado (piano e cavaquinho), Fran Castellar (voz), Hidras Tuala (voz), Hilda Maria (voz), Laura Santos (clarinete), Leo Matumona (voz), Luis Cabrera (saxofone tenor e soprano), Mah Mooni (voz), Maiara Moraes (flauta e flauta em sol), Mariama Camara (voz), Nelson Lin (cítara de martelo), Oula Al-Saghir (voz), Paula Tesser (voz), Pedro Ito (bateria e percussões), Tiago Daiello (baixo) e Yousef Saif (bouzouki), além de Paula Mirhan (voz) e Rui Barosi (baixo), que gravaram o álbum e hoje moram fora do Brasil.
FAROFAFÁ conversou com exclusividade com o idealizador do grupo Carlinhos Antunes, que além de tocar e compor, assina a direção musical e artística e divide a produção musical com Pedro Ito.
QUATRO PERGUNTAS PARA CARLINHOS ANTUNES
ZEMA RIBEIRO: Como surgiu a ideia e o que levou você a arquitetar a Orquestra Mundana Refugi?
CARLINHOS ANTUNES: A Orquestra Mundana em 2017 fazia 15 anos. Era uma orquestra formada por brasileiros, só que eventualmente, a cada ano a gente convidava músicos de outras partes do mundo para tocar com a gente, mas eram coisas específicas, pontuais, projetos específicos, pontuais. Quando ela fez 15 anos eu escrevi o projeto Refugi, chamei uma assistente social, a Cleo Miranda, para me ajudar nessa questão, e a gente conseguiu fazer, junto ao Sesc Consolação, dois ou três meses de trabalho, envolvendo debates com refugiados imigrantes, oficinas, aulas abertas, ensaios abertos, práticas de dança, e desse processo de ensaios abertos eu acabei recrutando pessoas que, a orquestra, que tinha 10, 11 pessoas, passou a ter 22 integrantes. Esses integrantes são de diversas partes do mundo.
ZR: No princípio a língua foi um obstáculo ou os músicos sempre se falaram por música?
CA: No princípio, a gente tinha essa questão das línguas mesmo. As línguas não eram um obstáculo, mas eram uma situação que exigia de todos nós, primeiro uma paciência para entender todas as línguas e, mais que isso, a gente tinha claro que naquele primeiro momento, tinha claríssimo isso quando eu chamei, que seria uma orquestra que iria naquele momento refletir essas várias culturas, no sentido assim, não como uma colcha de retalhos, mas seria ainda assim, teria música árabe, música isso, música aquilo, representando os povos, mas naquele primeiro momento a maioria das composições era de minha autoria e eu fiz isso porque a gente tinha muito pouco tempo para ensaiar, fazer show, gravar disco, porque como eu tinha rodado com essa experiência toda da Orquestra Mundana eu tinha muitas composições inspiradas nesses povos ou com parceiros dessas culturas. Então a gente, a primeira reunião, que foi difícil, no sentido da língua, mas foi muito bonito porque estava todo mundo muito no pique, na vontade de mostrar sua cultura, de ouvir a cultura do outro, mas ainda assim, seria assim, cada um representando a sua cultura. Minha ideia, logo em seguida desses shows, eu falei, bom, agora o nosso desafio vai ser cantar em várias línguas, não que a gente não tenha feito isso no primeiro show, mas a gente vai conhecer melhor cada cultura e vai se embebedar dessa cultura, esse é um processo, que eu pensei inicialmente em cinco anos, depois veio a pandemia, mas cinco anos é um processo no qual, eu pensei, calculei, que seria um tempo de a gente se conhecer melhor, se envolver com os modos musicais e com as próprias linguagens faladas, dos outros povos, aprender, com todo respeito e todo mundo cantar e tocar, tendo o Brasil, por ser um país muito híbrido culturalmente, São Paulo sobretudo, um bom lugar para acolher essas culturas e tendo o Brasil como esse amálgama.
ZR: A seleção de repertório também abrange as diversas geografias de origem do grupo. Como se dá esse processo?
CA: O repertório, justamente foi isso, num primeiro momento esse repertório eram mais composições minhas, depois eu fui jogando para músicas tradicionais dos povos da orquestra, de cada um da orquestra. Depois, nesse terceiro momento e nesse disco, nós já temos repertório de outras culturas que não fazem parte da orquestra, que é legal também, ou seja, entender que é uma orquestra que transcende as suas próprias culturas, que canta, tem esse desafio de cantar em outras línguas, que tem esse desafio de abarcar outros povos que não os mesmos, e essa que é a ideia, e fazer isso com amor do mundo e trocar essas culturas, com respeito, de religiões que a gente tem na orquestra, com respeito das culturas, com tudo isso. E esse disco reflete isso.
ZR: Os músicos da orquestra têm outras ocupações? Como é manter uma rotina de ensaios e apresentações com um grupo tão grande, na contramão de uma lógica, digamos, mais comercial?
CA: Os músicos da orquestra têm, não outras profissões necessariamente, eles têm outras ocupações dentro da música, na maioria, ou da dança. Nós temos, talvez, dois ou três músicos que têm outras profissões além da música, mas talvez hoje 90% da orquestra tem a música como sua primeira ocupação, obviamente não só vivem da orquestra, porque a orquestra não tem condições, nós não temos financiamento para isso, não temos patrocínio, então vivem dando aula, têm outros grupos de música, têm aulas que dão, têm oficinas, têm aulas de dança, no caso da Mariama, do Abu, que vêm lá da África ocidental, da Guiné, enfim, mas todo mundo está bastante involucrado, bastante enredado na música mesmo, nas artes. Mesmo o que tem outra ocupação, ele sai de lá e vai ensaiar, vai tocar nos seus grupos, enfim. Como eu disse, nós estamos buscando, nesse disco, já esse amadurecimento. A pandemia obviamente nos trouxe muito prejuízo, mas a gente não parou na pandemia, a gente continuou trabalhando sem parar, ainda que cada um nas suas casas, mas trabalhando, fazendo oficinas, uns conversando com os outros, discutindo repertório, tanto é que esse disco reflete exatamente isso, ele tem uma parte que foi gravada durante a pandemia, o repertório escolhido durante a pandemia, e outra parte depois da pandemia. Esse disco é bem reflexo dessa madureza, dessa maturidade da orquestra. E agora, como eu disse antes, a gente pode se dar ao luxo de cantar em várias línguas, em homenagear brasileiros, tentando cantar em português, com essa dificuldade, obviamente, da língua e do ritmo, que são muito diferentes, o Brasil tem muita, todos os povos têm, mas o Brasil tem muita particularidade também, e é difícil para uma pessoa que vem de outro país, de outra língua, cantar em português, principalmente quando a língua não é latina. Mas é isso, eu acho que a gente adquiriu uma maturidade, a gente hoje consegue ser uma orquestra que junta tudo isso. Eu acho que a gente está nesse caminho, que é uma orquestra que representa vários povos, que representa causas importantes, como a da Palestina, dos imigrantes, das mulheres no mundo, e também, ao mesmo tempo, um orquestra que os músicos têm muita felicidade de estar lá, tocar, cantar, porque é uma forma de estar representando a sua cultura e, muito mais que isso, representando outras culturas, se apresentando em vários lugares bonitos, com um público que se emociona, um público que gosta, um público que cada vez mais nos apoia, que participa. Nosso objetivo agora é rodar esse Brasil inteiro e depois sair do Brasil, para rodar também outros povos. Mas a ideia é ser a orquestra ser conhecida nacionalmente, esse é o nosso principal objetivo agora.
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Ouça Todo Lugar É Aqui: