Há um ano, a legalidade e a democracia rechaçaram muito mais, mas muito mais mesmo, do que uma tradicional tentativa de golpe de Estado.
O que foi derrotado no dia 8 de janeiro de 2023 foi um projeto de institucionalização da barbárie. Após a proclamação do resultado da eleição presidencial de 2022, o Brasil passou a viver um Estado permanente de insuflação das ilegalidades, de sabotagem cotidiana da autoridade, de negação dos proclames da Justiça, de revanchismo político e comunitário. Mas engana-se quem acredita que o golpe consistiria somente nisso, na tomada do poder político. Urdiu-se, para além disso, um golpe de amplo escopo social e comportamental, que acalentou implantar uma nova ordem na sociedade à imagem e semelhança do poder miliciano – um Estado paralelo, gerador de instâncias instantâneas de arbitragem moral, todas elas concentradas na mão de um único núcleo “familiar”, por assim dizer, e com a aplicação da vendetta pessoal como regra de governança.
Os derrotados na eleição, encastelados até o último minuto no aparato do Estado brasileiro (e indo até além do último minuto) passaram a espalhar a ideia de que, protegidos por uma silenciosa unanimidade fora da lei (um pacto subliminar integrado ameaçadoramente por setores das Forças Armadas, das polícias, da imprensa e do judiciário), seu séquito de partidários fanáticos estava liberado para impor, a partir dali, todos seus preconceitos, seu racismo, sua homofobia, sua misoginia, seu negacionismo, suas unanimidades violentas obtidas em situações de coação social – desde que isso se destinasse a castigar severamente “o outro lado”. Por “outro lado”, entenda-se tudo que contestasse minimamente suas sandices aquarteladas, sua orgulhosa falta de educação pública e sua fast morality, insuflando uma ruptura agressiva até com a produção alegórica de arte e cultura. O discurso do derrotado na eleição, feito com dois dias de atraso, chamou os aquartelados de “movimentos populares” e afirmou que eram movidos por “indignação e sentimento de injustiça”. Era uma chancela amplamente compreendida pela seita.
A violência, o vandalismo e a depredação do patrimônio público que o mundo presenciou na Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro, era na verdade um ato de convocação geral. O Estado Maior do golpismo acendia ali um rastilho de barbaridades com o qual pretendia implodir até mesmo as instâncias mais controladas do trânsito político daquele governo derrotado – casos da Procuradoria Geral da República, da relação institucional com o Congresso, os entes federativos e os tribunais -, além dos conceitos constitucionais basilares. Se tivesse tido êxito, o bolsonarismo preparava-se para esquartejar até o conceito de “aliado”, ativando uma nova fase de sua evolução teratológica.
O que levou ao recuo (e posterior esvaziamento) foi uma aparente combinação de acasos e também de coragens. O histrionismo da tropa de choque golpista (publicizada pelos atos de incontinência fecal e pela fúria agressiva contra policiais plantonistas) que invadiu o Palácio do Planalto e o STF desencorajou a entrada dos reservistas do golpe na aventura. O despreparo dos detonadores da bomba também ajudou a molhar os rojões da desinstitucionalidade. Mas houve fatores externos que ajudaram, agora parece evidente – o desequilíbrio democrático no Brasil, de consequências imprevisíveis, teria a capacidade de espalhar-se como uma pandemia. E surpresas internas, principalmente a firmeza e a bússola jurídica de Flávio Dino e o súbito destemor de Alexandre de Moraes, artífice não apenas da força-tarefa da legalidade judicial, mas também da posterior aplicação didática e minuciosa da lei.
O golpe foi rechaçado, mas não derrotado. Quando vemos ressuscitarem o bordão do “medo da polarização” acerca dos atos de legalismo programados para este dia 8, constatamos que se está admitindo como polo democrático a consciência de uma facção que sonhava explodir aeroportos, incendiar delegacias e enforcar juízes, e não que se trata de cuidados com as eventuais idiossincrasias de eleitores da direita (até porque a eleição findou-se em 31 de outubro de 2022). Insinua-se a necessidade do que chamam de “pacificação”, eufemismo para negligência, permissividade, passar a mão na cabeça de criminosos. É possível ver com clareza que a gravidade dos acontecimentos não foi totalmente compreendida pelos que mais ficariam à mercê dos efeitos de seu possível triunfo. Mas polarização de golpista é cana!