São três composições nunca gravadas em disco, compostas em co-autoria entre Belchior e Rodger Rogério no início dos anos 1970. Uma chama Proposta, a outra chama Comunicação Total e a outra não foi nomeada. A ideia é começar a mostrá-las na festa de aniversário de 80 anos do cantor, compositor, violonista, Físico e ator cearense Rodger Rogério, expoente do grupo conhecido como Pessoal do Ceará (Ednardo, Fagner, Belchior, Jorge Melo, Cirino, Téti e outros) e parceiro de Belchior em um clássico da canção nordestina, Chão Sagrado. A primeira dessas músicas com 52 anos de maturação será ouvida já no próximo dia 28 de janeiro, um domingo, às 18h, no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, quando Rodger começa a festejar seu aniversário. As canções inéditas co-escritas com o bardo de Sobral também estarão presentes no novo disco de inéditas que Rodger pretende lançar esse ano.

A primeira das três inéditas a serem apresentadas ao público será Proposta, parceria com Belchior de 1972, no show em Fortaleza que abrigará uma plêiade de convidados do anfitrião, como seu irmão Rogério Franco e os filhos e netas, além de grandes músicos da música do Nordeste. Rodger Rogério é considerado um expoente da música do Ceará (como compositor, tem canções gravadas por Ney Matogrosso, FagnerEdnardo, entre outros), e também se destacou em seu trabalho como ator nos premiados filmes Bacurau, Greta e Pacarrete. “Eu começo a comemorar os 80 no dia 28 de janeiro, com esse presente de fazer um show no Cineteatro São Luiz, mas continuo a celebrar durante o ano todo, até os 81”, anunciou o incansável Rodger. 

Lá em 1972, Rodger vivia em São Paulo com a então esposa Téti, trabalhando como professor no Departamento de Física da Universidade de São Paulo, colega de papo, de cátedra e de copo de Paulo Vanzolini. Juntamente com Belchior, Jorge Melo, Ednardo, Téti, Rodger trabalhou ainda produzindo novas composições todas as semanas para o programa Proposta, conduzido pelo apresentador Júlio Lerner na TV Cultura. A casa de Rodger em São Paulo foi o primeiro “resort” do Pessoal do Ceará em São Paulo, quando aqueles artistas começaram a pensar em ganhar o Sudeste com sua arte. Lerner alistou os recém-chegados no seu programa com um projeto arrojado: eles teriam a incumbência de compor canções instantâneas, feitas a partir do perfil dos entrevistados do programa. Essas músicas eram utilizadas durante o Proposta para preparar perguntas, comentar respostas e às vezes ilustrar com música o que dizia cada entrevistado. Não há mais registros em vídeo da gravação daqueles programas, e boa parte das canções compostas com a velocidade e o timing da emergente televisão se perdeu. Mas Rodger (assim como Ednardo) guardou algumas sob o chapéu. Proposta era a música-tema do programa (letra e música são de Belchior e Rodger):

Proposta

(Rodger Rogério/Belchior, inédita, ano 1972)

Essa é nossa proposta

Tome a sua decisão 

Com seus olhos e ouvidos

E a sua imaginação

Viver é grande perigo

Perigosa profissão

Mas nunca falta motivo

Nunca falta ocasião

Para renovar o mundo

Para renovar o mundo

Ciência, arte e razão 

Para renovar o mundo

Para renovar o mundo

Ciência, arte e razão 

Essa é nossa proposta

Tome a sua decisão

A aparente simplicidade da letra de Proposta não impede que a canção carregue embutidos alguns dos jogos de citações e contrabandos intelectuais de Belchior. A relação conceitual entre os termos “ciência, arte e razão” (além de sugerir, como outras músicas do bardo de Sobral, premonição em relação ao negacionismo que assolou o Brasil e o mundo a partir da pandemia de 2020), insinua uma referência aos questionamentos do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) e seu ensaio Sobre a Filosofia e Seu Método, de 1817. Revela ainda uma curiosa ponte temporal com a canção Antes do Fim, do álbum cult Alucinação (1976), que realoca o verso “viver é que é o grande perigo”, já contido em Proposta. Outra curiosidade sobre essa música é que ela é a única, até prova em contrário, que mostra um pequeno arcabouço de manifesto coletivo (“Essa é a nossa proposta/Tome a sua decisão”), algo que Belchior sempre evitou.

Anfitrião do Pessoal do Ceará em São Paulo, o jornalista Júlio Lerner (1939-2007) participara, em 1969, da criação da TV Cultura, mantida pela Fundação Padre Anchieta, e desenvolveu toda sua carreira na emissora, apresentando programas como Vox PopuliPanorama Especial (para o qual fez lendária entrevista com a escritora Clarice Lispector, em 1977) e a série de especiais 40 Anos de TV, em 1990.

O cantor, compositor, violonista, advogado de direitos autorais e escritor piauiense Jorge Melo, que vivia no Rio na época, lembra que o programa da TV Cultura lhe pagava as passagens aéreas e hotel em São Paulo para que viesse participar do “brainstorm” de composições do Pessoal do Ceará. “Lembro de tudo, claro”, contou Jorge. “Entre os anos de 1971 e 1972, tínhamos muitos contatos em São Paulo. O Reynaldo Zangrandi, que era o gerente-geral dos Móveis Bergamo, e a dona Antonieta Bergamo, grande benfeitora da época, esposa do proprietário (Nestor Bergamo) e nossa mecenas, montaram uma programação pra gente. (Antonieta) Levou a gente para a TV Bandeirantes. Mandava o seu motorista nos apanhar e levar para tudo quanto é lugar. E assim fizemos programas de TV e rádio grandes, no Teatro Bandeirantes, e em outros lugares. Estivemos em quase todos os programas da TV Cultura. Ela nos mandava passagens, comandava nossas relações públicas, promovia jantares na casa dela com diretores de grandes empresas. Nós ainda não tínhamos um pé em São Paulo, isso só depois que o Rodger veio lecionar na USP”, contou Jorge Melo. “A gente metia o dedo na viola e aquilo ia gerando um repertório. Foi quando surgiu esse programa na TV Cultura, e o Lerner nos propôs fazer as entrevistas em forma de música”.

Jorge Melo lembra de um desses programas, no qual o entrevistado era Paulo Autran, que revelou que tinha se formado em Direito, mas não fizera o exame da OAB como uma forma de protesto, porque o pai o tinha obrigado a cursar advocacia – o velho Autran não se conformava com a carreira no teatro. “O que pensa você? Fazer da vida a paz? O que pensa você? Fazer da vida a paz? Ser coronel ou tenente ou marinheiro do cais? Ou será que o Brasil vai ter um doutor a mais?”, escreveu Melo, na canção que gravou em 1976, O Que Pensa Você?. “Todas as perguntas eram em forma de canção. Não havia uma só pergunta que fosse falando, conversando. Fazíamos nos estilos todos, possíveis e imagináveis. Ao invés de a pergunta partir do apresentador/jornalista, ele convidava um de nós para fazer”.

À beira dos 80 anos, a atividade artística de Rodger Rogério está intensificada. Em 2023 ele lançou, em parceria com o cantor e compositor cearense Vitoriano, o disco Instante Zero ou O Primeiro Sinal Luminoso, incluindo inéditas em parceria entre os dois. Também no ano passado lançou o especial audiovisual Chão Sagrado Revivido, regravando a íntegra do repertório do disco que dividiu, em 1975, com a cantora (e ex-esposa) Téti. O disco dos 80 anos, com as inéditas de Belchior, está em processo de gravação, mas ainda depende de recursos para vir à luz.

FAROFAFÁ pretende seguir mostrando aqui em primeira mão as canções nunca ouvidas (ou quase nunca) dos parceiros de Belchior, incluindo Elis, inédita composta com Jorge Melo (com o próprio Bigode como intérprete). Acompanhe!

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