“Urucungo”, nono álbum da cantora Fabiana Cozza, traz 12 faixas assinadas por Nei Lopes
Palavra do quimbundo, “Urucungo” (Biscoito Fino, 2023), um dos nomes para berimbau, intitula o novo álbum da cantora paulista Fabiana Cozza, inteiramente dedicado ao repertório de Nei Lopes, cantor, compositor e escritor, uma das maiores autoridades do Brasil quando o assunto são as culturas africanas e sua herança em terras brasileiras.
Nei Lopes completou 80 anos ano passado e “Urucungo” chegou às plataformas digitais neste mês da consciência negra – a data é celebrada em 20 de novembro, em homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares (1655-1695). Fabiana Cozza não esconde a bússola que o compositor sempre foi para ela, na costura entre samba e pensamento.
Em “Urucungo” Fabiana Cozza está acompanhada de Alfredo Castro (percussão), André Fajersztajn (clarinete e clarone), Beatriz Pacheco (flauta e sax soprano), Douglas Alonso (bateria e percussão), Gian Correa (violão sete cordas; cavaquinho em Quesitos), Henrique Araújo (bandolim e cavaquinho; violão tenor em Senhora do Mundo), Tiganá Macedo (percussão), Vanessa Ferreira (baixo acústico) e Xeina Barros (percussão).
“Urucungo” traz ainda as participações especiais de Leci Brandão (voz em Dia de Glória, parceria de Wilson Moreira e Nei Lopes, que abre o álbum), Francis Hime (piano em Ofertório, parceria deles), João Camarero (violão em Pólen, de Fátima Guedes e Nei), Ilessi (voz em Alquimias, de Everson Pessoa e Nei) e Guinga (voz, violão e arranjo em Jurutaí, parceria deles), além do próprio Nei Lopes (voz em Quesitos, parceria dele com Wilson Moreira, que fecha o álbum).
Por e-mail Fabiana Cozza conversou com exclusividade com FAROFAFÁ.
SEIS PERGUNTAS PARA FABIANA COZZA
ZEMA RIBEIRO: Nei Lopes pertence a um raro segmento de artistas, cantores e compositores que além de cantar e compor, pensam sobre seu habitat, seu meio ambiente, isto é, Nei, não só por também escrever livros, é um pensador, um filósofo, do samba, mas não só, de toda a africanidade que permeia seu próprio trabalho, mas indo além. Você mesma o reconhece como bússola. Esta homenagem era inevitável? Como surgiu a ideia?
FABIANA COZZA: Nei Lopes ilumina caminhos a nós, pesquisadores e artistas. Estamos falando de um intelectual negro singular que ajuda e ajudou com sua obra a recontar a história das musicalidades negras em diáspora. Fui surpreendida com um telefonema do produtor de Nei, Marcus Fernando, dizendo que estava organizando o acervo dele (Nei) e que gostaria de me mostrar algumas canções. Depois que ouvi Dia de Glória, parceria com o grande Wilson Moreira [1936-2018], Pedi que me enviasse tudo o que Nei autorizasse e decidi fazer o álbum. Gravo Nei Lopes desde o meu segundo álbum [“Quando o Céu Clarear” (2007)]. À exceção de dois trabalhos, a obra dele anda junto com a minha trajetória de cantora. Em 2019 fui citada em seu livro “Afro-Brasil Reluzente – 100 Personalidades Notáveis do Século XX” [Nova Fronteira]; em 2017 ele apresenta meu primeiro livro de poemas, “Álbum Duplo” [Pedra Papel Tesoura], numa dobradinha com a orelha escrita por Chico César. Ou seja: para além de amigos, temos uma caminhada de colaborações artísticas, respeito e reconhecimento mútuo.
ZR: O próprio Nei participa do álbum. Para você o que significa este endosso?
FC: Nas artes negras em geral há a figura do “nganga”. Do quimbundo, o mestre, o feiticeiro, a pessoa mais experiente, mais velha. Eu aprendo isso desde criança e ter Quesitos interpretada por ele engrandece a canção, joga luz sobre transformações profundas que o samba-enredo sofreu desde a sua criação e chama a nossa atenção para que futuro almejamos, estamos construindo.
ZR: O repertório tem arco amplo, passando por diversos tipos de samba, com letras passando pelos mais variados assuntos. O que foi mais difícil no processo de seleção do repertório?
FC: Nei é um grande criador e a diversidade poética, melódico-harmônica do álbum mostra isso. Acho que um álbum termina quando você sente que aquilo que precisa ser dito está dito. Não tive dúvidas quando fechei as 12 canções, a despeito da qualidade das demais. “Urucungo” é isso aqui. Ponto. A partir daí, começou a minha defesa enquanto intérprete.
ZR: Quero te ouvir também sobre a escolha dos instrumentistas e convidados especiais, além de produção e direção musical, enfim, cada um que colocou a digital para tornar “Urucungo” realidade.
FC: Henrique Araújo e Douglas Alonso dirigiram e produziram o álbum. Chamamos para esse time musicistas e músicos jovens de São Paulo que têm vivência e linguagem de samba, de choro, de música preta brasileira. Gente que me conhece enquanto artista. Isso fez toda a diferença para se chegar à sonoridade do álbum. Francis Hime, Ilessi, João Camarero, Guinga, Leci Brandão e o próprio Nei são pessoas que admiro muito e também compreendi que deveriam participar dessa celebração.
ZR: Urucungo é um dos nomes para o berimbau. Entre tantas outras, o que alçou a música a título do álbum?
FC: O escritor pernambucano Marcelino Freire, amigo de mais de 20 anos, é quem batizou praticamente todos os meus álbuns. Ao ouvir esse trabalho, em especial, me ligou dizendo: “esse disco se chama “Urucungo”, Fabiana”. Acho que ele tem total razão à medida que chamamos todos para escutarem o que o “nganga” Nei e seus parceiros têm a nos dizer e ensinar.
ZR: Tendo a ouvir “Urucungo”, o álbum, também como afirmação, uma contribuição de uma artista para a luta antirracista, ao evidenciar a obra de um personagem tão importante e também antirracista no pensar e no sambar, em um tempo em que ainda são frequentes as notícias de intolerância e racismo religiosos, não raro com ataques a terreiros de religiões de matriz africana. Você concorda com essa leitura?
FC: Acho que nunca estive em outro lado a não ser esse: o da defesa da arte negra brasileira que, por si só, é uma defesa pela nossa existência que, por sua vez, está condicionada à luta pela vida cotidiana, por nossos saberes, pensamentos, corporalidades, ancestralidades. Um canto negro será sempre um canto antirracista.
*
Ouça “Urucungo”: