Bebel Gilberto reverencia o pai com sutileza em “João”

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Bebel Gilberto - foto Bob Wolfenson

Quatro anos depois da morte de João Gilberto (1931-2019), sua filha Bebel Gilberto reverencia do pai no álbum João, com releituras ternas e tristes de 11 das não muitas canções gravadas pelo inventor da bossa nova ao longo da vida profissional. Como não poderia deixar de ser, o aspecto afetivo norteia a homenagem, desde a foto da capa, que exibe a pequena Bebel beijando seu então jovem pai. Nascida em 1966, portanto depois da eclosão da bossa no final dos anos 1950, a cantora dá preferência ao conciso repertório gravado por João nos anos 1970, ou seja, aquele que corresponde à infância da filha.

João e Bebel – foto Helga Ancona

Do álbum João Gilberto en México, publicado em 1970, vêm o clássico “Ela É Carioca” (lançado por Lúcio Alves em 1964), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e o bolero “Eclipse” (1943), da cubana Margarita Lecuona. Do mitológico João Gilberto de 1973 (o da capa branca, que inspira também a capa de João), Bebel resgata quatro canções: “Undiú” e “Valsa”, apenas cantaroladas e compostas por João, “Eu Vim da Bahia” (1965), tema de juventude do discípulo e futuro tropicalista Gilberto Gil, e “É Preciso Perdoar”, dos baianos Carlos Coqueijo e Alcyvando Luz, canção apresentada pelo MPB 4 no Festival Internacional da Canção de 1966. De Amoroso (1977), por fim, ressurge “Caminhos Cruzados” (1958), da parceria fundadora (e breve) de Tom Jobim com Newton Mendonça (1927-1960).

Do cancioneiro instituído por João no núcleo duro da bossa nova, anterior ao nascimento de Bebel, são extraídos três standards, um de cada um dos álbuns fundadores do cantor: “Desafinado” (1959), de Tom Jobim e Newton Mendonça, “O Pato” (1960), de Jayme Silva e Neuza Teixeira, e “Você e Eu” (1960), de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, gravado por João em 1961. Não são as faixas mais brilhantes do álbum.

Numa ponte entre tempos históricos diversos, Bebel inicia o álbum cantando “Adeus América”, que João registrou para a posteridade em 1986, mas é um samba pré-bossa de Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa gravado pelo grupo vocal Os Cariocas em 1948. Autorreferentes para o pai, os versos “não posso mais, que saudade do Brasil, que vontade que eu tenho de voltar/ adeus, América, essa terra é muito boa, mas eu não posso ficar porque/ o samba mandou me chamar” tornam-se autorreferentes também para a filha, que fincou carreira internacional a partir dos Estados Unidos, em 2000, norteada pelo crossover de bossa e eletrônica.

Embora a homenagem da hora seja ao pai, a voz de Bebel Gilberto remete mais que nunca à da mãe cantora Miúcha (1937-2018), que morreu poucos meses antes de João. Esse detalhe torna o tributo ainda mais íntimo e tristonho, o que fica ressaltado pelos arranjos discretos, mais bossa que eletrônica, nos quais as programações e teclados do estadunidense Thomas Bartlett jamais se sobrepõem à guitarra acústica de Guilherme Monteiro e à voz de Bebel. Bartlett, também conhecido pelo codinome Doveman, tem trabalhado com artistas como St. Vincent, Sufjan Stevens, Rufus Wainwright e Taylor Swift.

Os momentos do álbum em que Bebel Gilberto parece estar mais próxima do pai são as duas composições sem letra de João, “Valsa” e “Undiú”, ainda que essa última não atinja os espetaculares e irreproduzíveis “D” estralados da versão autoral, e, mais que todas, a belíssima “É Preciso Perdoar”. Essa última se equipara à original no efeito obtido por João, de elaborar uma canção suspensa no ar, cujos versos melodramáticos “eu sei que é preciso perdoar/ foi você quem me ensinou/ que um homem como eu/ que tem por quem chorar/ só sabe o que é sofrer/ se o pranto se acabar” dão desde 1973 a sensação de que vão durar para sempre.

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