‘Nunca tocamos a linha do mainstream’, diz Dengue, da Nação Zumbi

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A formação atual da banda Nação Zumbi, cujo primeiro disco, Da Lama ao Caos, completa 30 anos de lançamento em 2024

Em 2024, celebraremos 30 anos de lançamento do disco Da Lama ao Caos, do grupo pernambucano Chico Science & Nação Zumbi, o mais influente artefato musical produzido nos últimos 40 anos no Brasil. Radicalizando a estratégia de fusão entre o tradicional e o moderno, entre a macropolítica e a micropolítica, a poesia e a cosmogonia, Da Lama ao Caos salpicou de inovações, possibilidades e novidades a música jovem nordestina, por um lado, e a brasileira e universal, por decorrência, gerando uma cena multidisciplinar e fértil.

Mesmo após a trágica morte de seu aríete criativo, Chico Science, em um acidente de automóvel em 1997, a banda nunca deixou de produzir material de relevância e inquietação artística. Em 2015, um conflito interno abalou as estruturas do coletivo – o percussionista Gilmar Bolla 8 se afastou do grupo, e as consequências jurídicas desse racha se fazem sentir ainda hoje nos passos da banda.

Na última sexta-feira, 25, a Nação Zumbi lançou uma nova versão da canção-tema do seu clássico Da Lama ao Caos por meio do seu projeto Manguefonia, que celebra o movimento Manguebeat. Participaram da gravação (realizada este ano no Fábrica Estúdios, em Recife), Jorge Du Peixe (vocal), Dengue (baixo), Toca Ogan (percussão), Marcos Matias e Da Lua (alfaias), Vicente Machado (bateria) e Neilton Carvalho (guitarra). A nova versão foi produzida com exclusividade para a nova série de TV Cangaço Novo, da Amazon, cuja trilha tem ainda artistas como Beto Villares, Érico Theobaldo & Submarino Fantástico (coletivo formado pelos músicos Otavio Carvalho, Kezo Nogueira, Ingo André e Cauê Gas), Siba e Allen Alencar.

Perto de uma data tão importante, a dos 30 anos do disco de estreia, a chegada de uma nova versão provocou questionamentos. Por que não lançar a canção original? FAROFAFÁ conversou com Alexandre Salgues, o Dengue, baixista e membro fundador da banda Nação Zumbi, para saber a resposta.


Bem, indo já direto ao ponto, sendo bem franco: vocês fizeram essa nova gravação de Da Lama ao Caos especialmente para a trilha da série Cangaço Novo, né? Mas e se vocês quisessem usar a gravação original? Seria possível ou não?
Seria possível sim. A gente sempre que possível usa a original, mas agora a gente está no modo regravação de músicas por causa dos fonogramas. São várias gravadoras, para começar essa conversa, né? No caso (o fonograma) é da Sony (Music), e às vezes embaça muito você pedir autorização aqui, autorização ali. E quanto mais antigas as coisas, pior, na verdade. Aí a gente tá numas de regravar algumas faixas para facilitar isso. A gente gera um novo fonograma e do novo fonograma os donos somos somente nós: eu, Jorge (Du Peixe) e Toca (Ogan, percussionista) e a gravadora, a Babel. Então a gente mantém um controle maior sobre a obra e faz muito mais rápido.
Mas isso não tem a ver com o Gilmar Bolla 8?
Olha, tem a ver com muita coisa e ele, eu não gosto nem de falar o nome dele porque tem um processo no meio, ele não é um dos que ajuda mais não, na verdade. Não posso falar o nome, não gosto, como eu falei, tem um tempo esse processo rolando aí, beleza, que a gente quase ganhou, mas é sempre estranho falar isso. E quanto menos obstáculos, para nós é melhor. Então a gente decidiu também ficar fazendo isso, toda vez que alguém chamar a gente pra fazer, a gente oferece a opção: “Ó, tem a versão original, mas a gente pode fazer uma segunda, vai ser mais rápido, autorização é tudo com a gente, não tem que ficar rodando por aí. E também não tem essa essa surpresa aí de poder bloquear. A gente nem quer saber se haverá bloqueio ou não, a gente já tá fazendo de novo para nem ter que saber disso, para ter controle, né? Controle total. Os problemas também vão crescendo e a gente vai aprender com essas coisas, então já nem pergunta mais a ninguém. A gente já faz um novo.
A música de vocês sempre se prestou muito à coisa imagética, né? Eu, por exemplo, lembro o impacto da primeira vez que eu vi no cinema, acho que foi em Baile Perfumado (dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas), que tinha música da Nação.
Foi a primeira vez no cinema, com o Sangue de Bairro (do disco Afrociberdelia, de 1996). Depois Manguetown e Banditismo Por Uma Questão de Classe. Mas algumas músicas a gente mudou a original. É o que muito artista faz com a obra, para facilitar essa coisa, gerar um novo fonograma e tornar aquilo seu.
O Belchior fazia muito. Depois de uma certa altura da carreira, ele quase não usava mais as versões originais.
Porque é isso, (às vezes) é uma gravadora que já quebrou, que não existe, tem um contrato, tem um processo, aí o cara vai, grava e é dele.
Agora vamos passar para a questão estética propriamente dita: Da Lama ao caos foi a primeira grande canção composta pela Nação?
É do primeiro disco, né? Eu não sei, na verdade; essa canção ela vem dando nome ao disco, porque é um disco, como você fala aí, todo imagético, conceitual, e ela tem essa ideia. Mas eu não sei na verdade. Eu não entendo disso, então…
Pelo que eu li, ela é de quando Nação Zumbi ainda não era o nome da banda.
Era sim. Ela foi uma das primeiras canções como Nação. Antes, era Loustal. Era uma zona, né? Na verdade tinhamos só Chico, Lúcio e eu de fixo e o resto ia girando. Jorge ainda trabalhava na Vale. A percussão, em cada ensaio, era um cara diferente.
E os versos, essas coisas de “eu me organizando posso me desorganizar”, têm muito a ver com que nós passamos agora há pouco, né, com o momento político?
Incrivelmente, ela vai ser sempre atual. Sempre vai ter um golpe em andamento. É a dialética da vida, do assalariado, do brasileiro, alguém sempre querendo enganar a gente.
“O homem roubado nunca se engana”.
É, exatamente. Ele (Chico) era muito panfletário. Era a idade, também, né? A gente era muito novo. Ele tinha saído de lá nos 90, tinha feito parte do movimento que tinha sua sede em Rio Doce, junto com Jorge. Na época tinha uma associação, tudo tinha a ver com essa cultura de rua, né? Que é de onde nós viemos todos.
E o fato é que foi em 94, e o disco agora vai fazer 30 anos.
É incrível pensar sobre isso.
É incrível por quê?
E que foi rápido, né? Não parece ter 30 anos, na minha cabeça tem 10.
No início dos anos 1990, uma colega minha, Juliana Resende, escrevia muito sobre a Nação e nos advertia que seria a próxima grande renovação da música. E de fato se tornou. Teve um momento em que chegou a ser… Você acha que vocês se tornaram mainstream hoje, uma corrente dentro da música?
Não. A gente jamais tocou a linha do mainstream. Eu acho que o tamanho da gente é de médio porte e sempre foi esse. Ali no começo, talvez tenha dado uma pequena impressão, porque a gente fez uns programas grandes, e eu sempre atribuo isso a questões da época, à sorte, e ao fato de ter a Sony por trás. Porque, se a gente tivesse uma gravadora independente ia demorar demais para chegar no ouvido das pessoas e talvez até tivesse morrido aqui em Recife, né? Todo o grito, todo o movimento, talvez não passasse de nada, mas como tinha a Sony, eles tinham grana, tavam investindo… Poxa, eu lembro que a gente ficava a tarde toda dando entrevistas para o Brasil todo, fazia um rodízio. e vivia todo mundo pendurado no telefone: Jorge em um, eu em outro, Chico em outro. Tinha filmagem, tinha TV, a gente fez Faustão, a gente fez até Angélica. Xuxa não. Participamos de milhões de outros programas de TV na época, então, assim, teve uma grande alavancada aí para chegar para fora de Recife, além de um… sabe… Antigamente, a gente só tinha umas palavras de Hermano Vianna ou de José Teles, ou Marcelo Pereira que escrevia aqui para o Jornal do Commercio. Fora dos amigos jornalistas assim, e um cara importante como Hermano, demoraria muito mais para as outras pessoas, os jornais, perceberem esse movimento. A gente não vai saber nunca, mas talvez nem chegasse a pingar fora de Recife, se não fosse uma gravadora e o esquema da época, né?
Você fala da circunstância da época, e tinha também umas coisas que ajudavam a impulsionar. MTV também era uma máquina de divulgação, que não existe mais, né?
Mas era UHF, era aquela novela pra pegar… Só se fosse em São Paulo, né? Aqui tinha um brother que construía uma antena e a gente ia para casa do cara para poder ver a MTV. Enfim, era assim no começo, mas já chegou logo, né? Eu lembro da matéria da MTV com a gente lá no Alto da Sé, isso realmente também ajudou. Acho que foram vários fatores; à época, o Brasil precisava de uma cena musical. Não que não tivessem outras, mas precisava de algo precisava de que a gente dispunha naquela época, e a gente tava pronto para uma renovação, com a variedade, né? Não só música, como banda, mas com outras manifestações agregadas. Como o cinema; você citou o Baile Perfumado. Tinha uns caras que tinham chegado de Caruaru, o Claudio Assis, os maluco todos, né, e juntou com a gente, e, nesse combo, a gente tem uma coisa pronta a gente meio que sabia meio que não sabia porque eu também não tinha época, né, mas a gente só sabia que tava fazendo alguma coisa.
Você lembra do maior público que vocês tiveram nessa carreira de 30 e poucos anos?
Acho que foram os festivais. Hollywood Rock, Rock in Rio, embora só nos palcos pequenos. A gente só fez o palco grande quando fez com Cássia Eller, quando ela chamou a gente para participar do show dela, o show dela no Rock in Rio. A gente ia naquele palco Sunset. A gente só fez o grande quando Cassia Eller chamou a gente para participar. Foram duas músicas. Mas eu esqueço o ano, nem o que eu almocei eu lembro muito.

Eu lembro daquele show quando ela abriu a camisa e mostrou os peitos, eu tava lá nesse Rock in Rio, foi em 2001, por aí…

Foi nesse show! Antes, a gente já tinha feito algo com Arto Lindsay e ela. O Arto armou um show que era ele, Vinícius Cantuária… genial a escalação que ele fez: era ele tocando a guitarra dele, Vinícius, um baterista lá que ele trouxe, Cássia e a gente, interagindo com Cássia e Vinicius. Era bem irada essa ideia, e ele ficava tocando aquela guitarra dele lá e trouxe (o baixista) Melvin Gibbs. Conheci o Melvin, puta baixista que tocava na Rollins Band, bandas que eu admirava, nunca tinha nem sonhado em tocar com ele (esse show foi no festival Heineken Concerts, em 1998, e teve ainda o DJ Spooky e o tecladista Andres Levin).
Há muitos anos, estive num show de vocês aqui em São Paulo, no Circo Benetton, ali na Ponte Cidade Jardim. Era uma coisa promocional, com serviço de buffet, patinhas de caranguejo e cachaça.
Era o show de lançamento do Da Lama ao Caos. Ganhei um caranguejo de fibra gigante nessa noite, ficou um tempão na casa de um amigo, uma vez perguntei a ele e ele disse “joguei fora, quebrou”. Foi desse show aí, dessa promoção. Tiveram a manha de alugar o Circo Benetton, João Gordo tava lá, todo mundo tava lá. A MTV tem um clipe disso, a gente cantando A Hora e a Vez do Cabelo Nascer, dos Mutantes. Fizeram um cenários e tocamos, tem um clipe desse show também muito bom.

Deixa eu perguntar do futuro: essas regravações vão render alguma coisa ou elas são só para cumprir essa demanda?
Como eu falei, a gente vai gravar o que vem pedindo. Para facilitar, hoje a banda inteira, à exceção de Jorge voltou para cá pra Recife. Jorge ainda mora aí, então o que acontece é que tá todo mundo aqui e o estúdio que a gente gosta de gravar, o Fábrica, geralmente é muito disponível para gente tudo que a gente quer fazer lá. Fica com a qualidade boa, os dois são nossos amigos e a gente então tudo que tem que fazer rapidamente faz, a gente já grava tudo numa tarde. E aí já manda para Jorge, caso ele não esteja aqui, e formata tudo como sempre foi, até na época de Chico era meio assim, a gente formatava as músicas antes e Chico vinha com as letras depois.
E Chico vinha com as letras, depois é música, era assim em 60% dos casos e isso perdura até hoje, né? Várias formações e hoje é o mesmo é o mesmo esquema, eu vou no estúdio regravo com os caras, com esta banda mando para Jorge gravar uma tarde, lá no outro dia tá pronto. Se ele puder vir com as vozes ele vem grava com a gente faz uma voz guia. Valendo ele só grava em São Paulo, porque quando ele volta para casa fica mais tranquilo, aqui quando ele vem ele faz só mais voz guia.

Então por enquanto a gente está nessa de (atender a) pedido; não é uma pretensão assim de regravar toda a obra, como muita gente tem feito. E pra gente é massa, porque eu tenho a oportunidade de mexer num clássico. Possivelmente (algo) que eu também compus, e umas que eu não tô no meio, né? Dá uma girada, é um tempo de se reinventar; eu acho ótimo, eu gosto desse desafio. É uma faca de dois gumes, né? Por que pode ficar uma merda. Mas eu gosto muito desse desafio. Por exemplo: a gente tem o disco de Jorge Ben, reinterpretando Jorge Ben (projeto da banda paralela da Nação, Los Sebosos Postizos), e a gente já gravou um de Bob Marley & The Wailers (também com Los Sebosos, em 2019), Tim Maia. Como Nação, já gravamos a Radiola NZ (disco de releituras de 2017, com músicas de David Bowie, Marvin Gaye e Secos & Molhados, entre outros). É muito perigoso você mexer num clássico, mas é muito tentador.. Mas é muito bom. E, se junta os dois, e se é (material) meu, da minha banda, aí que eu posso mexer de novo, sempre a gente sempre faz com um pouquinho diferente. A gente já gravou um de Bob Marley. A gente tem essa opção de fazer igual igual, à risca, né? Cuspido ali, cagado e cuspido, como a galerinha di. Ou a gente pode fazer com aquela pequena diferença, eu sempre opto pela pequena diferença e ver o que que dá. Eu nunca errei até hoje minha aposta nisso, pode ser que na próxima a gente erre feio.
Tem gente que fala: eu sinto falta das guitarras do Lúcio (Maia). Eu sinto falta disso, eu sinto falta daquilo. Isso não incomoda vocês não?
Claro que não. Eu sinto falta do Jimi Hendrix! (risos). Mas eu também respeito quem não tá ali, né? Pink Floyd, por exemplo: Roger Waters saiu. É claro que eu gosto do Pink Floyd com David Gilmour cantando. Jamais questionaria esse sentimento. Eu sou fã também. As coisas têm que ser como elas têm que ser, como elas acontecem. O fã também tem que entender esse tipo de mudança. Pega o Red Hot: Frusciante sai, Frusciante volta. Eu adoro o Chili Peppers com David Navarro também, caralho. A gente tem que aprender a ver que às vezes é um apego besta. O fã sempre ver aquilo congelado e as coisas, a vida, não é bem assim. Essa decisão de regravar foi muito espontânea, e veio sem pensar, cara. Jorge no começou era meio avesso à ideia. Eu sempre gostei. Ela veio por uma necessidade.

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