Doris Monteiro, o suingue branco

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Gravando sambas-canções chorosos para o selo Todamérica desde os 17 anos de idade, a cantora carioca Doris Monteiro (1934-2023) foi capturada para os ventos da modernidade pela gravadora Continental em 1955, aos 21, ao gravar “Se É por Falta de Adeus“, composição de Dolores Duran e de um Tom Jobim pré-bossa nova, com arranjo do próprio. Nem a bossa nem Doris estavam prontas para sair da casca do ovo ainda, e o arranjo de Jobim que seduziu a plateia com maior força foi o do lado B do compacto, o samba-canção juvenil “Dó-Ré-Mi”, de um compositor que era (literalmente) fabricante de sabonetes, o português radicado no Rio Fernando César. Tema prosaico, “Dó-Ré-Mi” guardava o trunfo de, diferentemente dos sambas-canções aboleados em vigência, trazer uma letra ensolarada em vez de lamuriosa: “Eu sou feliz tendo você/ sempre a meu lado/ e sonho sempre com você/ mesmo acordada/ (…) você é dó, é ré, mi, fá, é sol, lá, si”.

Muito jovem, Doris foi uma das intérpretes pioneiras de Tom Jobim, em composições que ficaram na obscuridade (caso de “Engano“, parceria de 1956 com Luiz Bonfá), mas também numa versão felpuda, precisa e concisa para “Eu Não Existo sem Você” (1958), de Tom e Vinicius de Moraes.

“Eu Não Existo sem Você”, na voz felpuda de Doris, 1958

Gravando fossas de Maysa e sambas-canções de nomes indicativos como “Melancolia” (1956), a jovem Doris comeu poeira para os rapazes da bossa, e não por acaso obteve destaque mais nítido quando adotou o tom solar que seria o grande trunfo da bossa nova, como no samba suingado “Mocinho Bonito” (1957), do pré-bossa-novista paraense Billy Blanco. Aqui, ela exibia um traço que jamais seria o forte do movimento que estava sendo gestado, e que usaria para se reinventar mais adiante: o suingue.

Crônica de costumes e conflito de classe em “Mocinho Bonito”, 1957

Cronista ferino, Billy Blanco tirava onda dos playboys e pseudo-playboys da zona sul e esboçava falar de um conflito de classe que ficaria soterrado pelo sucesso do amor, do sorriso e da flor: “Mocinho bonito/ perfeito improviso do falso grã-fino/ no corpo é atleta, no crânio é menino/ que além do ABC nada mais aprendeu/ queimado de sol, cabelo assanhado, com muito cuidado/ na pinta de conde se esconde um coitado/ um pobre farsante que a sorte esqueceu/ contando vantagem/ que vive de renda e mora em palácio/ procura esquecer um barraco no Estácio/ lugar de origem que há pouco deixou/ mocinho bonito que é falso malandro de Copacabana/ o mais que consegue é vintão por semana/ que a mana do peito jamais lhe negou”.

“Mocinho Bonito” se comunicava com a origem social da própria Doris, nascida em Copacabana, filha de empregada doméstica, criada por casal de dona de casa e porteiro. Era muita realidade para o Brasil de sonho e conquista descortinado pela liderança de Juscelino Kubitschek, e o samba-canção de Copacabana caminhava para ser suplantado pela bossa de Ipanema.

Embora de modo ainda insuficiente, o suingue da voz de Doris foi mais burilado a partir de 1961, quando gravou os sambalanços pícaros e auto-irônicos “Fiz o Bobão” e “Palhaçada“, dos craques do gênero Haroldo Barbosa e Luiz Reis. Sucesso popular, o segundo ficaria mais identificado com a voz morena do ex-crooner de baile Miltinho: “Cara de palhaço, pinta de palhaço, roupa de palhaço/ foi esse o meu amargo fim”.

Além de Billy Blanco, o carioca João Roberto Kelly, também um ás do ocaso das marchinhas de carnaval (autor, por exemplo, da infame “Cabeleira do Zezé”), foi outro cronista de costumes vocalizado por Doris, mas do lado, digamos, errado da peleja. Assim o demonstra o sambalanço “Tempos Modernos” (1961): “Da seresta à bossa nova/ o amor, pra se dar prova,/ também entrou na tal evolução/ já não há mais trovador/ e hoje em dia o elevador/ levou pro apartamento o que era feito no portão”.

“Tempos Modernos” documentava uma realidade social da época: com a verticalização das moradias no Rio e em outras metrópoles e a substituição de pianos (e acordeões) por violões, bem mais fáceis de carregar para andares altos. De modo algo grosseiro, o crítico musical José Ramos Tinhorão captou o fenômeno de (i)mobilidade social, caracterizando a bossa nova como filha de aventuras clandestinas (e abusivas) do patrão com a empregada doméstica do apartamento. Como se colocava do lado da reação e da resistência aos novos tempos, o discurso nostálgico de Kelly, Doris e Tinhorão nem fez muita sombra ao edifício da bossa, que se construía a todo vapor – ao contrário, ajudou a firmar a imagem do movimento como o novo, o futuro, a virtude.

Sem rumo no tiroteio, Doris Monteiro seguiu gravando material tido como ultrapassado em contraste com a bossa, mas também preciosidades esparsas, como o descarrego “Volta por Cima” (1963), de Paulo Vanzolini; os sambalanços “Olhou pra Mim” (1963), dos afogueados animadores de baile Ed Lincoln e Silvio Cesar, e “Sambou… Sambou” (1964), de João Donato e João Mello; a bossa praieira de segunda geração “Samba de Verão” (1964), de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle; o sambalanço joãogilbertiano “Baiãozinho” (1964), do bossa-novista/samba-jazzista recém-nascido Eumir Deodato: “Baiãozinho toca/ e mostra que também tem bossa/ apesar de ser bem carioca/ ele é bom, bom, bom, bom”.

Uma virada tenta se armar a partir de 1966, quando Doris deixa de pular de gravadora em gravadora e se fixa na Odeon (onde permanecerá por 13 anos), uma casa fonográfica que começa a alçar voo como abrigo de artistas inovadores (mas não revolucionários) como Elza Soares, Wilson Simonal, Milton Nascimento, Paulinho da Viola e Clara Nunes. Doris estreia na Odeon com o álbum Simplesmente, oscilante entre o samba e a MPB (a faixa de abertura é “Meu Refrão“, do novato Chico Buarque), o samba-jazz, o afro-samba e o sambalanço (“Apelo“, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, “Aquarius” e “Muito à Vontade”, de João Donato), a bossa e a fossa (“Fim de Noite“, de Chico Feitosa e do agitador bossa-novista Ronaldo Bôscoli).

O que hoje seria interpretado como ecletismo soa nesse período como indefinição e queda de braço: quem é que vai ficar com Doris?, com quem Dois vai ficar? “Carolina” (1967), de Chico, puxa-a para a nascente MPB. “Eu e a Brisa“(1967), de Johnny Alf, aproxima-a da bossa negra, da bossa extra-Ipanema. O produtor Hermínio Bello de Carvalho puxa a brasa para a sardinha do samba-raiz, com uma seta aplicada bem no alvo, “Mudando de Conversa” (1968).

A letra do samba parece dar a diretriz: é preciso mudar de conversa. “Mudando de conversa, onde foi que ficou/ aquela velha amizade/ aquele papo furado todo fim de noite num bar do Leblon/ meu Deus do céu, que tempo bom/ tanto chope gelado, confissões à beça/ meu Deus, quem diria que isso ia se acabar?, e acabava em samba, que é a melhor maneira de se conversar”, propõe, em registro de jovem saudosismo, a canção de Hermínio e Maurício Tapajós.

Questão de classe: “Carteira Assinada”, 1969

Dessa transição é também um sambinha de classe chamado “Carteira Assinada”, que descredencia Doris para sempre a ser admitida no olimpo bossa-novista, se é que ainda havia resquício de pretensão nesse sentido: “Uma carteira amassada sofrida e suada de tanto vaivém/ bem pouco assinada, mas bem viajada no aperto do trem/ (…) no samba ele esquece a tristeza, a luta da vida, a roupa puída/ esse é o retrato mais vivo de um trabalhador”.

“Garoto Paissandu”, “orgulho da indústria nacional”, 1969

No LP Mudando de Conversa (1969), as crônicas de costumes tomam feição de canção de protesto reacionário na faixa de abertura, “Garoto Paissandu”, de Mariozinho Rocha, integrante do efêmero Grupo Manifesto: “Garoto genial/ de barba e de bigode/ pra ser original/ faz tudo quanto pode/ na praia ele anda quase nu/ cinema só se for no Paissandu/ tem aula de inglês/ no museu que é da imagem/ e de som entende pouco/ mas adora um vernissage/ de fome ele fala, mas não passa/ se o chamam de burguês ele acha graça/ é contra o imperialismo, mas só usa calça Lee/ tem soluções para o Nordeste, mas não quer sair daqui/ garoto Paissando, garoto genial/ o orgulho da indústria nacional”. A mira parece apontar para a tropicália, mas cairá na cabeça do próprio Mariozinho Rocha, futuro chefão das trilhas sonoras de novelas globais, orgulho da indústria fonográfica nacional. Doris Monteiro, de carona, está como sempre na contramão.

Correlata feminina ao “Garoto Paissandu” é “Miss Universo“, assinada por Tita e Renato da Rocha, zombeteira e algo misógina, mas mais gentil na crônica de costumes: “Olhos verdes mais cansados, um sorriso enfezado/ nariz torto e com desvio, seus cabelos são dois fios/ compensando seus defeitos, tem um coração no peito/ (…) é tão magra essa menina, em vez de curvas tem esquinas/ é mais alta que uma porta e tem um par de orelhas tortas/ mas, por mais que não pareça, tem miolo na cabeça/ isso hoje ninguém tem”. Em meio à pandega, uma versão bem lenta de “Wave“, ou “Vou Te Contar”, de Tom Jobim, fica deslocada no lado B do LP, próxima da velha “Canção da Volta“, samba-canção matador da lavra do pernambucano Antonio Maria (morto em 1964) e um standard nas vozes de Dolores Duran e de Elizeth Cardoso.

Os primeiros anos na Odeon montam um quebra-cabeça de samba miscigenado, que só vai encontrar uma (potente) razão de ser na virada da década de 1970, tempo de desenvolvimento de samba-rock, samba-soul, samba-funk etc., sob as barbas de Simonal, Jorge Ben Jor, Tim Maia e alguns brancos suburbanos vindos do outro lado da ponte da bossa nova. Doris Monteiro (1970) é o primeiro fruto dessa nova fase e a primeira obra-prima de Doris Monteiro. Ela parece encontrar uma identidade própria na versão mais pop do que antes se chamou samba-jazz, sambalanço etc., na linha do que também estão fazendo nesse período estrelas como Elis Regina e outsiders como Claudette Soares e Evinha. Doris, nos anos 1970 e para sempre, pertence à segunda estirpe.

Sob coordenação de Renato Corrêa, também integrante do grupo de iê-iê-iê negro (e de samba-rock, nessa altura) Golden Boys, Doris extravasa todo o suingue que ficou armazenado por duas décadas, em gravações tonificadas de canções black-pop antológicas, como “Vou Deitar e Rolar (Quaraquaquá)” (da dupla afro-samba Baden Powell-Paulo César Pinheiro) e “Comunicação” (de Helio Matheus), ambas lançadas simultaneamente por Elis; “Se Você Quiser, mas sem Bronquear” (do pai da matéria Jorge Ben Jor); a suburbana “A Feira” (do maranhense Nonato Buzar); “Brasil, Brasa, Braseiro” (do pernambucano Paulo Diniz); “Glória Glorinha” (de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, então compositores de ponta da pilantragem de Simonal); “Garota do Pasquim” (do “rei da pilantragem” Carlos Imperial). Há ainda, ora vejam só, “Coqueiro Verde“, sucesso do Trio Mocotó de Jorge Ben e de um dos compositores, Erasmo Carlos – o outro é Roberto Carlos, e eis aí os rapazes branquelas que vieram do outro lado da ponte.

“Festa na Paróquia”, contra os “moços da verdade, donos da canção”, 1970

Nesse disco está, por fim, outra forte provocação e, portanto, outro selo de desterro para Doris Monteiro junto ao status quo emepebista em período de constituição. Tropicalista e antitropicalista, “Festa na Paróquia”, mais uma crônica de João Roberto Kelly, é cristalina: “Hoje vai ter festa na paróquia/ tem um aviso na porta principal/ cuidado com o samba brasileiro/ a noite é do som universal (genial)/ bota no pescoço uma corrente/ e fala que Noel está bissexto/ faz onda, vai de hippie, vai pra frente/ você está inserido no contexto/ moços da verdade, donos da canção/ gênios da guitarra e do camisolão/ a palavra é essa: comunicação/ hoje a noite é vossa, enterrei na fossa/ nossas estruturas mais tradicionais/ hoje tem ceia dos geniais”.

“Festa na Paróquia” é mais um tiro n’água, tanto quanto um documento precioso: o que Doris está criticando, o “som universal”, um nome antepassado da tropicália, é exatamente o que ela está fazendo nesse momento, um som universal, mestiço, impuro, classe média alta bossa-novista suburbana de Copacanema.

“Doris” 1, 1971

A inspiração musical prossegue e se agiganta em dois vigorosos álbuns denominados simplesmente Doris, em 1971 e 1972, ambos com orquestrações e regências pop-eruditas do maestro cearense Geraldo Vespar, egresso de trabalhos com os maestros negros Astor Silva e Moacir Santos e com orquestras televisivas e prestes a ir compor a orquestra kitsch-easy listening do francês Paul Mauriat. Na assistência de produção do compêndio de som universal do primeiro Doris está, quem diria, Mariozinho Rocha.

O cardápio em Doris 1 e 2 é vasto e começa por um clássico indelével do samba-rock, o ensolarado “É Isso Aí”, composição ironicamente assinada por um até então emedebista empedernido, o carioca Sidney Miller: “Preparei uma roda de samba só pra ela/ mas se ela não sambar/ isso é problema dela/ (…) inventei na semana um domingo só pra ela/ se ela for trabalhar/ isso é problema dela”.

“É Isso Aí”, 1971: se ela não dançar, o problema é dela

No lado B do LP de 1971, aparece em versão abrasiva a canção exilada “De Noite, na Cama” (gravada simultaneamente por Erasmo e por Simonal), mais identificada com seu autor Caetano Veloso (e, duas décadas depois, com Marisa Monte), que parece apaziguar os ânimos entre tropicalistas e resistentes, de Caetano para Doris e de Doris para Caetano: “De noite na cama eu fico pensando/ se você me ama e quando”.

“Doris” 2, 1972

Homogeneizada pelos tratamentos musicais, a “eclética” seleção de repertório se livra da aparente falta de direção dos discos dos anos 1960 e forja uma identidade composta na multiplicidade, onde cabem sem ruídos o samba joia baiano de Antonio Carlos & Jocafi (“Mas Que Doidice“, “Aliás, Aliás…”, 1971, “Nego Me Chamou de Imbecil”, 1972), o pós-iê-iê-iê pré-feminista carioca de Elizabeth (“Mundo Pequeno”, “Eu Quero, Eu Quero, Eu Quero“, “Hei Você”, 1971), a bossa-soul carioca de Marcos Valle (“Ao Amigo Tom“, 1971) e a bossa joia de Vinicius & Toquinho (“Mais um Adeus”, 1971, “Regra Três“, 1972), o patronato sambista de Noel Rosa (“Conversa de Botequim“, 1971), a transgressão hippie do capixaba emergente Sérgio Sampaio (“Coco Verde“, filhote do “Coqueiro Verde” de Erasmo e Roberto, 1971); a estreia do baiano Walter Queiroz em dupla com o carioca Cesar Costa Filho, então um amaldiçoado pela MPB mais ativista (“Dose pra Leão”, “Lero, Lero”, 1972); e mais uma pulada de cerca de Erasmo (e Roberto) (“Moço“, 1972).

No Doris de 1972, a dobradinha com Sidney Miller se repete em três faixas, “Ora, Acho Que Vou-Me Embora“, “Essa Menina” e “Alô Fevereiro“. Essa última é antológica, mais samba-raiz que samba-soul, samba-rock ou sambalanço: “Tamborim avisou/ cuidado/ violão respondeu/ me espera/ cavaquinho acabou/ dobrado/ quando o apito chegou/ já era/ veio o surdo e bateu/ tão forte/ que a cuíca gemeu/ de medo/ e o pandeiro dançou/ que sorte/ fazer samba não é/ brinquedo”.

O ciclo samba-rock é perturbado ou complementado, a gosto do freguês, pela série de quatro LPs lançados entre 1970 e 1973 pela dupla Doris-Miltinho, dando prosseguimento à trilogia samba-jazz do cantor com Elza Soares (1967-1970). A cantora olha ao mesmo tempo para o passado, em pot-pourris de sambalanço e/ou samba-canção nos quatro volumes de Doris, Miltinho e Charme, e para o futuro, nos discos solo molhados de suingue e samba-soul. Um ponto perdido entre o passado e o futuro, é esse afinal o espaço que Doris Monteiro sempre ocupou na música popular brasileira.

Em mais um Doris, de 1973, ela e Vespar suavizam a fórmula, e a voz acamurçada se esbalda no forró-canção “Eu Só Quero um Xodó” (de Dominguinhos e Anastácia); na toada ultramoderna “Até Quem Sabe?” (João Donato); nos pós-iê-iê-iês negros “Lá Se Foi a Imagem do Bom Crioulo” (do golden boy Roberto Corrêa) e “Água de Fonte” (Nenéo), no sambas joia “Jogo Duro” e “Se É Questão de Adeus, Até Logo” (Tom & Dito), na toada-MPB “Viagem” (de João de Aquino e Paulo César Pinheiro) e, pela última vez, no samba-rock de Sidney Miller (“Até Parece“), que morreria precocemente, em 1980, aos 35 anos.

O fogo inventivo decresce relativamente nos dois discos solo que encerram o ciclo Odeon (agora EMI-Odeon), Doris Monteiro (1974) e Agora (1977). No primeiro, a cantora intercala repertório típico de sua obra nos 1970 com uma volta ao samba-canção, de Peterpan (retomando “Se Você Se Importasse”, sua primeira gravação, de 1951), Joubert de Carvalho (“Dor de Recordar”), Lupicinio Rodrigues (“Vingança”), Henrique Beltrão (“Amendoim Torradinho“), Dilu Mello (“Fiz a Cama na Varanda“), Dorival Caymmi (“Nem Eu”). É uma mulheragem implícita às cantoras que primeiro interpretaram tais sambas-canções: Linda Baptista, Angela Maria, Stellinha Egg, Sylvia Telles, Nora Ney… Doris acrescenta aí, em pique de passado-futuro, uma amostra da transgressiva pós-Dolores Duran Dora Lopes (“Vontade É Coisa Que Dá e Passa“), e o samba-rock só marca presença em “A Nega e o Rebolado“, de Elizabeth.

Num compacto duplo de 1975 e em Agora, Doris flerta mais de perto com a agora hegemônica MPB, gravando Gonzaguinha (“Geraldinos e Arquibaldos“, 1975), Sueli Costa (“Flauta de Lata“), João de Aquino (“Partida”, “Dia de Feira”), João Donato e Gilberto Gil (“Lugar Comum“), e com o samba, do mais tradicional (“Eu, Hein, Rosa!”, de João Nogueira, dois anos antes da releitura de Elis Regina) ao mais chegado ao crossover (“Maitá“, de Geovana, “Pra Não Padecer”, de Carlos Dafé). Noutra volta ao começo, Doris insere em Agora a pré-bossa “Lamento no Morro” (1956), de Tom e Vinicius para Orfeu da Conceição, e a anti-bossa “A Banca do Distinto”, de Billy Blanco.

“A Banca do Distinto”, 1977: “Pra que tanta pose, doutor?”

Essa última evoca, ainda uma vez, aquele conflito de classe que apareceu lá nos primórdios, e que talvez não tenha saído da mente de Doris, nem na glória, nem no ocaso: “Não fala com pobre, não dá mão a preto/ não carrega embrulho/ pra que tanta pose, doutor?/ pra que esse orgulho?/ a bruxa que é cega esbarra na gente e a vida estanca/ o enfarte lhe pega, doutor, e acaba essa banca/ (…) mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco, afinal/ todo mundo é igual/ quando a vida termina com terra por cima e na horizontal”.

Fora da indústria fonográfica (mas fazendo shows periódicos), o exílio em Copacabana será o destino final de Doris Monteiro, quebrado por trabalhos fonográficos episódicos, de encontros voltados para o samba-canção com dois de seus ídolos masculinos de voz macia do pré-bossa, Lúcio Alves (Doris e Lúcio no Projeto Pixinguinha, ao vivo, 1978) e Tito Madi (Brasil Samba Canção, 1992), com os pares femininos Eliana Pittman e Claudette Soares (As Divas do Sambalanço, ao vivo, 2020) ou em tributos coletivos a Dolores Duran e a Dalva de Oliveira.

O encerramento da produção fonográfica solo só foi rompido por duas incursões no samba-canção, num Doris Monteiro de 1981 e em Suavemente, gravado em 2004, mas só lançado há quatro meses. Naquele, cantou “Meu Nome É Ninguém (A Lâmpada Apagou)” (1961), que os velhos Haroldo Barbosa e Luiz Reis colocaram nas paradas à revelia da bossa, em versões nas vozes de Miltinho, Isaura Garcia e Nelson Gonçalves. Nesse recente, aparecem, em arranjos precários, três sambas-canções nunca registrados pela cantora, “Copacabana” (João de Barro e Alberto Ribeiro), “Molambo” (Jayme Florence e Augusto Mesquita) e “Caminhemos” (Herivelto Martins).

A letra de “Meu Nome É Ninguém” fala de amor mal-sucedido, mas é ilustrativa: “Foi assim/ a lâmpada apagou/ a vista escureceu/ (…) o meu nome é ninguém/ e o seu nome também/ ninguém”. A aposentadoria precoce de Doris Monteiro dos estúdios, ainda nos anos 1980, mostra aquilo que todo mundo sabe: Doris nunca recebeu carteirinha da bossa nova, da tropicália ou de qualquer corrente dominante da música popular que ela ajudou, no instinto e do suingue, a depurar.

(Leia aqui opiniões de Doris Monteiro sobre a música brasileira, 19 anos atrás.)

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1 COMENTÁRIO

  1. Uma grande e preciosa matéria,surpreso por ela gravar várias ”canções-eliseanas”,no mesmo ano e até antes de Elis Regina,mesmo assim,na sua humildade,ela sempre dizia que a pimentinha,era,mesmo,a maior – Sem contar os quiproquós que as duas tiveram no ”Fino da Bossa”,rs.

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