Foto de Jotabê Medeiros

“Ele é o cantor que atravessa aquilo que o compositor tinha em mente, e provavelmente vai um pouco além”, disse Frank Sinatra do colega Tony Bennett (1926-2023) em uma entrevista à revista Life, em 1965. “Para mim, é o melhor cantor nesse negócio”. Sinatra, é evidente, sabia o que dizia: a arte do intérprete encontrou em Tony Bennett, que morreu na sexta-feira em Manhattan, aos 96 anos, uma espécie de farejador de intenções, um artista que entrava em perfeita comunhão com o espírito das canções, seus impulsos originais.

Há diversos outros motivos que justificam a escolha de Tony Bennett como um gigante da interpretação, nenhum deles menor que o outro. Sua forma de se apresentar, impecavelmente enfiado num “tuxedo”, respirando as pausas, os suspiros, os ecos como se fosse uma conversa, explorando um espaço de intimidade entre o cantor e seu público que raros artistas da música habitaram, é um dos seus trunfos eternos. Tinha em si o sentido aguçado da função de entertainer, de mestre de cerimônias, de contador de histórias, mas a outra palavra para defini-lo é delicadeza. Tony se importava realmente com os sentimentos de sua plateia, e qualquer um que tenha ido a um de seus shows sabe disso perfeitamente.

Tony tratava as canções como pontes a serem estendidas ao vivo perante e entre o público. Foi desse modo que ele cunhou a famosa interpretação de Fly me to the moon, que encarava sem amplificação, colocando o microfone em cima do piano e mandando ver no gogó de forma aberta e clara para que o som alcançasse o lado mais remoto da sala, as zonas obscuras. Sem a amplificação eletrônica, o que ele pretendia era destacar a voz como única mediação possível no relacionamento humano, a voz e o gesto, o calor e a dicção aberta.

Ítalo-americano como os cantores da entourage da máfia (aqueles cantores que D. Corleone apadrinhava nos filmes), ele se locomovia também com facilidade extrema entre as emoções negligenciadas, de extremidades dramáticas, o derramamento, emoções acalentadas secretamente pelas populações espezinhadas do grande mélange estadunidense. Foi um dos primeiros artistas brancos do jazz a colocar-se ao lado, artística e politicamente, de artistas negros militantes como Harry Belafonte, Sammy Davis Jr. e inúmeros outros. Marchou pelos direitos civis com Martin Luther King em 1965, mas nunca fez de seu ativismo político algum tipo de peça de autopromoção. “Sou muito influenciado pelos músicos afro-americanos que criaram o jazz. É muito melhor que rock’n’roll, mais espontâneo, e nunca envelhece”, disse, em entrevista à revista Variety. Deixa mais que discípulos, deixa herdeiros, como John Pizzarelli, Michael Bublé.

Sabedor de sua representação quase solitária num universo de crooners em extinção, Tony cuidou de ensinar sua arte da forma mais democrática possível: fazendo-se também aprendiz incansável e protetor de seus parceiros. Foi assim que se aproximou da tríade de cantoras dissidentes mais extraordinária que se tem notícia: k.d. lang, Amy Winehouse e Lady Gaga, com quem fez discos. E outras também, como Natalie Cole, Barbra Streisand, Madonna. Com essas trocas, ensinando a cantar standards e recebendo os novos standards em movimento, abraçou e foi abraçado pelo futuro, convertendo-se em um dos raros artistas octogenários a emplacar um álbum no topo das paradas, quando já tinha 85 anos.

“Acho que o jazz é um gênero fantástico. Mas gosto também de cantar o blues. Mais do que o country”, me disse Tony em 2005. Quem o ouvir cantando Everybody has the blues no programa de David Letterman, vai entender qual a natureza do amálgama multicultural que Tony Bennett propunha – sua interpretação é um tipo de transfusão de sangue, a admissão tácita de que os gêneros não têm pertencimento étnico ou racial, são uma oferenda da natureza humana a alcançar toda forma de sensibilidade humana.

Fosse cantando baladas, Eleanor Rigby, swing jazz ou fazendo duetos cartunísticos com o sapo Kermit no programa Muppet Show, Tony instantaneamente tingia de respeitabilidade e credibilidade qualquer coisa que encarasse. Esteve no Brasil entre os ideólogos da bossa nova, para se certificar daquela nova joia que emergia na música popular. Foi à Segunda Guerra Mundial como soldado, e voltou dela com uma única convicção: a de que estava do lado oposto de toda guerra.

Talvez a nota de pesar de Joe Biden tenha sido uma das mais precisas sobre o que Tony significou: “Por mais de 70 anos, Tony Bennett não apenas cantou os clássicos – ele era ele mesmo um clássico americano”.

UMA HISTÓRIA QUE ILUSTRA A LENDA DE TONY BENNETT

“Esse é o tipo amistoso de ato classista que dois dos meus amigos punks e eu, quando tínhamos uns 20 anos, protagonizamos no churrasco do meu pai. Algo que nunca esquecerei.

Ele (Tony Bennett) estava se apresentando em duas noites no Gilly’s, em Dayton, e nós fomos à primeira noite com minha mãe. Ele estava flanando pelo bar antes do show e a gente, meio na hesitação, meio no sarro, perguntamos a ele se ele não gostaria de ir ao nosso churrasco no dia seguinte. A gente não tava querendo perguntar a ele, mas minha mãe nos encorajou porque imaginou que raios de agenda ele teria no dia seguinte, em um dia de folga, em Dayton, Ohio.

Ele disse “vou perguntar aos rapazes e te digo depois do concerto”. Foi assim mesmo: ele veio e pediu para vir pegá-lo de manhã seguinte após sua partida de tênis matinal. Ficamos maravilhados.

Nós o pegamos na manhã seguinte no meu gigantesco Oldsmobile Delta 88, ele e o baterista Joe Labarbera e mais o cara do som. Quando eles entraram no churrasco, os queixos do pessoal caíram no chão. Eles não conseguiam imaginar como aqueles punks tinham trazido Tony Bennett até ali. Na festa, havia um punhado de moleques das redondezas com seus instrumentos. Tony não cantou, porque estava descansando e aproveitando a festa, mas seu baterista se juntou à galera para tocar algumas músicas. Tocaram por algumas horas e foi um arraso. Quando eu o estava levando de volta para o hotel, ele sentou na frente comigo e ficou expondo suas ideias sobre energia renovável e como era vergonhoso que ainda dependéssemos de combustíveis fósseis. Em 1987! Que figura! Ele falou que vivíamos em um lugar lindo (que eu mal via a hora de deixar para trás) e era o cara mais bacana e a pessoa mais doce que eu jamais encontrara.

Alguns anos mais tarde, eu o reencontrei em uma noite de autógrafos em Chicago e ele se lembrou do churrasco e mencionou de novo como foi agradável ter passado aquele dia conversando com minha mãe.

Todas as admirações para esse artista completo por seu talento, estilo e profunda humanidade não poderão ser menos do que merecidas.

NED FOLKERTH (em depoimento publicado em sua rede social)

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