João Silvério Trevisan

Aos 79 anos e em plena jornada de lançamento de seu novo livro, Meu Irmão, Eu Mesmo, o escritor e ativista homossexual João Silvério Trevisan dedicou alguns minutos para se lembrar generosamente de Vange Leonel, em depoimento espontâneo para a mulheragem realizada na quinta-feira 4 de maio, e também respondeu algumas perguntas a mais sobre Vange, Cilmara Bedaque, a história e o estado de coisas atual do ativismo LGBTQIAP+ no Brasil.

#VivaVangeLeonel: João Silvério Trevisan

João Silvério Trevisan: Eu não posso começar sem dizer que Vange era uma querida. la esteve presente desde o comecinho do (Grupo de Afirmação Homossexual) Somos, era uma garotinha e contava histórias muito engraçadas sobre as outras lésbicas do Somos. Quando perguntaram “você gosta de spanking?”, ela disse que não entendeu absolutamente o significado e disse: “Gosto”. Levou um tapa no rosto e tomou um susto (ri), ria muito contando isso.

Mas, na verdade, o que me pareceu bastante significativo com relação ao que Vange era, e foi uma descoberta tardia que fiz, foi quando nos encontramos, provavelmente pouco antes ou alguns anos antes da morte dela. Ela ficou de me visitar, marcamos, e foi combinado, por alguma sugestão que ela deu ou eu fiz, de nós vestirmos roupas muito parecidas. Por que isso? Porque ficou muito marcado na minha cabeça um certo período em que eu, interessado em botinhas, vi Vange com uma botinha maravilhosa que eu não tinha conseguido encontrar nem na Europa, e ela me indicou uma loja ali perto da Biblioteca Monteiro Lobato. Me contou que adorava usar botinhas masculinas e, aliás, adorava, segundo ela, usar roupas masculinas. Foi aí que começou a conversa, e quando ela veio me visitar então, nós estávamos de roupa muito parecida, toda preta, havia uma coisa S&M no meio. Tiramos uma foto na minha biblioteca com essa roupa.

O mais bonito dessa história toda para mim, o que sobrou, foi quando Vange me disse: “Eu não acho que o masculino seja um privilégio e uma primazia dos homens. Eu tenho direito ao masculino”. Eu achei aquilo tão deslumbrante, falei: porra, que mulher sagaz, que mulher inteligente, que provocadora. E isso tudo muito antes dos debates muito intensos que ocorreram sobre a questão de transgeneridade, que hoje têm uma importância em vários sentidos, politicamente falando.

Essa ideia de Vange ficou muito marcada e a partir dali eu pude já estar preparado para um debate que ainda ia ocorrer. Eu não sei se consigo transmitir com adequação o que isso me provocou e o que significava na época. Para mim, um estudioso, um pesquisador de questões de gênero e especialmente de homossexualidades, antes de a gente ainda falar de comunidade LGBTQ+, foi uma revelação, e jamais me esqueci disso. Portanto, quando recebi a notícia do falecimento de Vange, fiquei muito triste e lamentei imensamente, porque me parece que além de uma artista e ativista ali estava uma pensadora, com toda a sua tranquilidade, ela não trombeteava nada disso, de modo que minha lembrança de Vange é uma lembrança de muita ternura.

Pedro Alexandre Sanches: E Cilmara, você conhece?

JST: Chegamos a nos conhecer, mas não tanto quanto Vange. Vange me falou dela, me contou da companheira, e acho que uma vez num evento eu conheci Cilmara.

PAS: Ela é mais para dentro, fica mas escondida, mas é a outra metade daquilo tudo.

JST: Eu pude perceber, pelo que Vange me contou. Era um relacionamento muito importante para ela, pelo que me disse. Só posso dizer que infelizmente conheci Vange muito menos do que eu gostaria. Quando vi a peça dela (As Sereias da Rive Gauche), fiquei muito impressionado com o atrevimento de Vange, muito bem impressionado. Mas que mulher provocadora, ela foi buscar lá em Paris aquele grupo como uma referência, e a peça era muito bem articulada, com uma estrutura, um ritmo, e interpretações surpreendentes, como a de Suzy Capó. Fiquei muito impressionado com o trabalho de Suzy, eu não conhecia esse lado dela. A cena LGBT e lésbica perdeu muito com a morte de Vange. Em toda essa questão do masculino, ela teria uma participação fundamental na questão das transgeneridades. Mas acredito que a história tem razões que a própria razão desconhece, e provavelmente essa meta que Vange propôs está sendo muito bem cumprida. Basta ver a quantidade de representantes da comunidade no parlamento, especialmente as representantes trans, que a mim provocam uma admiração sem tamanho e uma alegria muito grande, porque são um foco de resistência anti-hegemônica de muita consistência e muita importância política para a esquerda brasileira.

PAS: Vange e Cilmara estiveram presentes na primeira parada, que ainda não se chamavam LGBT, e você também. Chegaram a se encontrar nesse momento?

JST: Sim, é provável que a gente tenha se visto. Era pouquinha gente, e era tão tímida, lá na praça Roosevelt, uma chuva, que a gente não sabia o que fazer, ficamos com aquele caminhãozinho parado ali na praça. Na segunda parada, foi bem mais clara a perspectiva que a gente tinha pela frente, apesar de estar aquela quantidade de gente com óculos escuros na cara para não mostrar totalmente onde estavam. Esse desdobramento fui acompanhando muito, com muito cuidado e atenção.

PAS: Você citou Suzy Capó, por que tantos e tantas ativistas dessa causa morrem tão cedo?

JST: Tenho a impressão que é a vela que queima rápido demais. Essas pessoas aparecem como uma chama de uma intensidade, tenho impressão que tem a ver com isso, é aquela vitalidade absoluta que se consome de uma vez. Não que isso seja uma possibilidade de nós celebrarmos, mas a gente celebra a existência dessas pessoas. As atividades de Suzy também eram várias na área, uma agitação enorme, uma produtividade, uma capacidade de inventar saídas e elementos. Mas tem alguma longevidade, inclusive a minha, absolutamente inesperada quando me olho. No ano que vem vou fazer 80 anos, que brincadeira é essa? O que é que aconteceu? Quando fiz 50, fiquei pasmo olhando no espelho, não acredito que estou aqui agora. É um absurdo que não consigo entender, faz parte do mistério.

PAS: Vai ter festa? Tem que ter…

JST: Não sei se vou ter energia para fazer festa. Na verdade energia eu tenho, mas tenho tanta coisa para fazer, ou tantas outras maneiras de celebrar, várias coisas ainda para terminar. Estou preparando meu acervo para deixar mais tranquilo, a biblioteca também, uma pessoa está fazendo restauro. Estou buscando doação, toda a parte de temática LGBT vou doar para o Museu da Diversidade. Esse é meu projeto. Então tenho muita coisa pela frente e muita disponibilidade para o que der vier. No meu romance autobiográfico Pai, Pai (2017), deixei muito claro como é a minha preocupação com a morte, e agora, nesse que lanço no dia 13, Meu Irmão, Eu Mesmo, é mais intensa a minha elaboração dessa questão que sempre me perseguiu, a morte. Tudo que já fiz de análise buscando resposta para isso até eu descobrir que a resposta é: não tem resposta, abra os braços e estamos aí…

PAS: Sem discordar da sua resposta, mas as mortes precoces de ativistas não seriam também porque homofobia mata, e você, por exemplo, é um resistente?

JST: Sim, é provável que esse elemento possa compor o quadro. Mas nesses casos específicos acho que é uma intensidade relacionada à grande vitalidade desses personagens. Agora, é claro que a homofobia é alguma coisa muito séria, muito perturbadora. Inclusive a revivescência disso no mundo, em várias instâncias políticas de vários países, é muito assustadora. Mas quando perguntam como era isso durante a ditadura, não tenho resposta. Em entrevista que dei semana passada sobre meu livro, disse exatamente isto: nós não pensávamos que estávamos resistindo. Nós simplesmente resistíamos. Não tinha alternativa, era isto ou isto. A grande importância é a convicção de que não íamos abrir mão do nosso direito de amar. Essa era uma convicção absolutamente intocável, e era isso que nos movia. É claro que havia todo o medo, houve situações muito difíceis, mas a gente estava lá, presente, sem pensar inclusive que “estou fazendo história”. A gente não tinha máquina fotográfica para tirar foto, lugar para nos reunir.

PAS: Pensavam que não iam ficar na história, já que apagavam tudo?

JST: Não, mas a gente sabia que não tinha nada que pudesse se contrapor a isso. Era uma convicção. Era muito louco, mas era verdade. Acabei de escrever no meu diário agora, vi um filme no Sesc Digital, do francês Robert Guédiguian, Uma Casa à Beira-Mar. O filme é muito delicado, não é um tema novo, mas a abordagem é muito delicada e especial. Num determinado momento há um corte, um flashback para o passado, muito abrupto, e entra uma música de Bob Dylan, “I Want You” (1966). Cara, eu me lembrei dessa música, eu só entendia “I want you”, meu inglês era praticamente zero, mas toda aquela força do Bob Dylan, inclusive na minha fantasia ele era homossexual, não tinha escapatória. A gente ficava fabricando auto-imagens, correndo atrás loucamente. E para mim aquela música era de um encantamento absoluto, porque me falava de um amor indiscriminado. Havia dentro de mim, na adolescência, aquele horizonte totalmente disponível para meu amor. Era isso que a gente sentia. Eu estava saindo do armário, brigando ainda com meu passado católico, mas a minha certeza era absoluta de que o amor me esperava. E essa música, de certo modo, resumia tudo isso, estava tudo implícito ali. É uma canção linda, não é a única que eu amava no período, me deslumbrava com muita coisa dos Rolling Stones, mas essa trazia esse projeto. E exatamente esse contexto, essa compreensão, essa conexão é que movia a gente: I want someone. Eu tinha certeza disso.

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