Vange Leonel, 60 anos

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Na quinta-feira 4 de maio, comemoramos os 60 anos da cantora, compositora, dramaturga, escritora, ativista feminista e lésbica etc. etc. etc. Vange Leonel, que infelizmente nos deixou cedo demais, em 2014, aos 51 anos. A data foi marcada por um ato solene na Assembleia Legislativa de São Paulo, convocado pelo gabinete do deputado estadual Carlos Giannazi (Psol) e organizado pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches (este que aqui escreve) e pelo produtor musical Rodrigo de Araújo, devidamente abençoados pela presença, pelas lágrimas e pelos sorrisos (várias vezes simultâneos) da jornalista, compositora, pensadora, carnavalesca, cervejeira etc. Cilmara Bedaque, companheira de Vange por 28 anos, até sua morte.

Cilmara Bedaque
Cilmara Bedaque ri e chora durante a mulherame à companheira Vange Leonel – foto Carol Mendonça

Foram muitos os momentos de grande emoção, desde os depoimentos quem não pôde estar presente, mas enviou lembranças, impressões e saudades por vídeo. Ali no telão apareceu gente queridíssima da música (Cida Moreira, Bruno Verner do Tetine, Taciana Barros, Simone Mazzer, Érika Martins, Thunderbird, Bela Expedito da Funny Alexander e Fernanda Takai, além de Mauro Sanches e Kuki Skolarski, companheiros de Vange na banda de rock oitentista Nau), do teatro (Marcia Bechara), da política (Eleonora Menicucci, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres sob o governo de Dilma Rousseff) e da astrologia (Graça Medeiros). O vídeo abaixo, editado pelo cineasta Rafael Saar, concentra esses depoimentos.

#VivaVangeLeonel: depoimentos

A emoção permaneceu suspensa no ar nos depoimentos em carne viva, nas diversas representações das atividades de Vange neste mundo. Em nome do ativismo feminista/lésbico/LGBTQIAP+, falaram Marisa Fernandes, Cristina Naumovs, André Fischer. As atrizes Bel Kovarick e Malu Bierrenbach lembraram suas participações na montagem de As Sereias da Rive Gauche, de Vange, e representaram o teatro, ao lado do ator Ivam Cabral, d’Os Satyros, e da atriz Marcia Bechara, diretamente de Paris. O autor Santiago Nazarian falou em nome dos escritores – e, segundo ele, dos góticos admiradores de “Noite Preta” (1991). Dos domínios da música, a mulheragem incluiu as vozes de Arícia Mess, Natália Barros, Marisa Orth e Théo Reis. Os três últimos integram também o grupo dos que privaram desde cedo da intimidade de Vange, ao lado do irmão dela, Otávio Gandolfo. Tiago Marconi e a também ativista Luka Franca evocaram os tempos de farra com o impagável Bloco Soviético, de que Vange e Cilmara foram membras fundadoras. DJ Zé Pedro também foi, mas não falou.

Ainda por vídeo, manifestaram-se o escritor e ativista homossexual João Silvério Trevisan (veja aqui) e o cantor e compositor Nando Reis, que, além de ter co-produzido o álbum solo de estreia Vange (1991), é pai de Théo e primo-irmão de Vange. A emoção faiscou no depoimento de Nando:

#VivaVangeLeonel: Nando Reis

Por registro, transcrevo abaixo minhas palavras iniciais como mediador da mulheragem. Há muito a descobrir e a redescobrir nos próximos anos sobre a grande pensadora brasileira Vange Leonel, por honra, justiça e dever de todo mundo a quem a voz de Vange calou fundo no coração enquanto ela esteve aqui.

Vange e Cilmara – acervo pessoal de Cilmara Bedaque

“Nasci no interior do Paraná e vim para São Paulo em 1991, exatamente no ano em que Vange lançou seu primeiro disco solo. Eu já era louco por música, mas tinha um grande problema nos primeiros tempos aqui: eu não tinha coragem de sair de casa à noite para ir em shows. Os únicos que eu vi logo de cara eram de Rita Lee, que fazia algumas matinês do Bossa’n’Roll nas tardes de domingo. 

Capa do álbum “Vange” (1991)

“Quando eu soube do show de lançamento do disco de Vange, que eu adorava sem saber bem por que, resolvi tomar coragem, e esse foi meu primeiro show noturno em São Paulo. 

“Foi também um teste para minha covardia, porque era véspera de feriado e o ônibus noturno que eu pensava que ia me levar pra casa não passou até o dia amanhecer. Fiquei sozinho no ponto de ônibus toda a calada noite preta, o que vai além de uma madrugada ao relento ou do amor que eu sentia e sinto pela Vange. Para mim foi um batismo de fogo, que varreu muito do medo que eu ainda tinha.

“O que não era bobagem nem coincidência é que naqueles tempos (e muito antes) Vange já moldava uma trajetória de ativismo pela causa que hoje se chama LGBTQIAP+, que também me diz respeito. Eu fui militar no jornalismo e militei muito pouco por essa outra causa. Fiquei mais recuado, junto com a maioria das pessoas com alguma presença pública no Brasil dos anos 90, enquanto a Vange e a Cilmara iam para a linha de frente, fazer o combate corpo a corpo. 

“Tenho certeza que Vange pagou um preço pela valentia de priorizar o ativismo feminista e lésbico sobre uma provável carreira de estrela pop. Hoje a gente vive um tempo incrível de afirmação de diversas causas, inclusive as que tiveram Vange como protagonista absoluta no pós-ditadura. A gente precisa lembrar a todo momento que nada disso existiria se Vange não tivesse ido à frente.

“Não foi só Vange que morreu cedo demais, isso aconteceu com vários outros ativistas, como Cazuza, Renato Russo, Cássia Eller, Suzy Capó, Claudia Wonder, Vitor Angelo, Senshô (muito conhecido pelas primeiras turmas do Twitter), mais recentemente André Pomba, e inúmeros outros que não viraram notícia de jornal. A gente não deveria nunca esquecer que esse pessoal abriu as portas e as porteiras para que hoje a gente tivesse liberdade para se expressar como não-binários, fluidos ou trans, por exemplo.

“Essas portas estão escancaradas hoje por causa de ativistas e intelectuais como Vange Leonel e como Cilmara Bedaque. É importante a gente lembrar que toda a obra de Vange foi produzida em dupla e em casal com Cilmara, que está aqui presente, viva e igualmente merecedora de todas as mulheragens que vamos fazer hoje à Vange. 

“Cilmara é integralmente co-autora de uma obra vigorosa que de modo geral ainda é muito mal conhecida por nós. Cilmara tem sido sempre mais recuada que Vange diante do olho público, mas o relicário construído em duas está todo nas mãos dela e não precisa nem pode esperar mais 60 anos pra ser conhecido e reverenciado. Não é mais hora de ficar no recuo, e a gente está só começando.

“#VivaVangeLeonel, #VivaCilmaraBedaque.”

Íntegra da sessão presidida pelo deputado Carlos Giannazi em mulheragem a Vange e Cilmara

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