O diretor Paulo de Moraes: “Os artistas não foram só deixados de lado por falta de uma política cultural no país, mas foram achincalhados nas redes sociais.”

A morte do dramaturgo Anton Tchekhov e o massacre de manifestantes pela Guarda Imperial Russa, que ficou conhecido como Domingo Sangrento, são as balizas da peça teatral Neva, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Tchekhov morreu em 15 de julho de 1904 e deixou viúva a atriz Olga Knipper. O Domingo Sangrento ocorreu seis meses depois, em 9 de janeiro de 1905, quando soldados do czar Nicolau II abriram fogo contra manifestantes que tentavam entregar-lhe um manifesto pedindo melhores condições de vida e trabalho. No texto do chileno Guillermo Calderón, em tradução de Celso Curi, os dois acontecimentos impulsionam uma reflexão cortante e dolorida sobre as potencialidades ou impossibilidades da arte diante da recorrente barbárie.

A montagem marca o retorno da Armazém Cia de Teatro (sediada no Rio de Janeiro), criada e dirigida pelo paranaense Paulo de Moraes, aos palcos de São Paulo, depois de um hiato de quatro anos – por conta da pandemia do coronavírus, que fechou as portas das casas de espetáculos. Quem está habituado com as montagens da companhia – especialmente as anteriores Hamlet e Angels in América – vai notar, logo de início, uma diferença: elenco reduzido a apenas três intérpretes: as atrizes Patrícia Selonk (no papel de Olga) e Isabel Pacheco (Masha) e o ator Felipe Bustamante (Aleko). Nota-se também uma profusão de microfones no palco, distribuídos de maneira proposital, ao modo de uma instalação cênica. Uma guitarra elétrica, utilizada pelo personagem Aleko, em alguns momentos, contribui para a sensação de estranhamento e para a criação de um evidente deslocamento temporal, do início do século passado para os tempos atuais.

Em entrevista ao Farofafá, o diretor Paulo de Moraes fala sobre o uso desses recursos, as dificuldades enfrentadas pelo mundo teatral durante a pandemia, as perseguições aos artistas em geral levadas a cabo pelo governo passado – no caso da Armazém, especialmente, o corte de um patrocínio continuado que garantia as montagens – e, sobretudo, sobre o papel da arte teatral em um mundo cada vez mais interessado,quase que obsessivamente, pelo tilintar das moedas.

Neva fica em cartaz no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros (rua Paes Leme, 195) até 14 de maio, com apresentações sexta e sábado (21h) e domingo (18h).

A ação de Neva se passa na noite de 9 de janeiro de 1905 em São Petersburgo e é marcada por dois acontecimentos: a morte então recente do dramaturgo Anton Tchekhov e o massacre de manifestantes que queriam entregar ao czar russo uma carta pedindo melhores condições de vida. O que esses eventos têm a dizer para os tempos atuais?

O Domingo Sangrento, acontecido em 1905, foi talvez o principal estopim pra Revolução Russa que se concretizaria 12 anos depois. A ação violenta da guarda imperial, que matou centenas de pessoas numa manifestação pacífica e fez a neve ficar vermelha, é o ponto de partida pro autor Guillermo Calderón refletir sobre o seu Chile da década de 1970. E serve também pra gente refletir sobre o Brasil desses tempos obscuros (que ainda não ficaram pra trás). E o teatro, nesse sentido, pode refletir sobre o presente, sobre o hoje, sem precisar ser literal. É bom poder refletir sobre o hoje sem precisar citar nomes ou acontecimentos atuais. Pra mim, essa literalidade impede uma fruição mais abrangente de qualquer obra. Eu acredito que quando a gente consegue levar o público a fazer associações, o poder do teatro se estabelece de verdade. Seguindo nesse mesmo raciocínio, a morte de Tchekhov em Neva é a morte da potência da poesia, da potência da arte, que é aquilo no qual tentaram tanto fazer a gente acreditar nos últimos anos. 

Em todo o texto há uma reflexão sobre o que pode a arte em geral e o teatro em particular diante das sucessivas brutalidades das classes dominantes. Em especial no monólogo final da personagem Masha, dirigido diretamente ao público, se pergunta sobre a irrelevância, ou não, do teatro frente à barbárie. Devolvo o questionamento: o que pode a arte?

Tantas vezes eu me perguntei sobre a irrelevância do teatro e da arte durante os últimos anos. Os artistas não foram só deixados de lado por falta de uma política cultural no país, mas foram achincalhados nas redes sociais, humilhados e ofendidos. A questão que Masha levanta durante a peça – pra que serve o teatro? – é antes de tudo dolorida, não é uma questão simples e não pede uma resposta simplista. É difícil mensurar a real importância da arte, por exemplo, durante a pandemia. Mas eu tive a impressão de que durante esse período, coma maioria de nós enclausurados dentro de casa, qualquer contato que tivéssemos com a música, a poesia, o cinema ou mesmo as experiências cênicas que foram feitas online, nos dava um pouco mais de força para suportar o que a gente viveu. Esses contatos pra mim vinham sempre repletos de emoção. Me lembro de assistir uma live do Caetano Veloso, fechado há meses dentro de casa, e chorar assistindo aquilo. E é meio contraditório chorar na frente de uma tela de computador. Me lembro também na pandemia, quando nossa companhia estreou uma experiência online chamada Parece Loucura Mas Há Método no Zoom, como foi potente quando a apresentação acabou, o publico foi abrindo suas câmeras, as janelinhas foram se multiplicando, e a gente percebia a intensa conexão que tinha acabado de acontecer ali. Existe uma potência na arte, pra mim, sem dúvida. A arte pode curar a alma. Mas eu acho o discurso de Masha brutal (e brutal com as próprias escolhas dela), porque é o discurso de alguém que se vê artista num mundo onde quase tudo é movido pelo lucro.

Passamos recentemente por duas situações extremamente difíceis: a pandemia, que atingiu todo o mundo, e um governo de extrema direita, com um forte discurso de ódio, que atingiu particularmente o Brasil. De que modo esses dois acontecimentos atingiram o próprio trabalho da Cia Armazém?

De um modo quase devastador. A companhia teve um patrocínio de manutenção durante muitos anos. No início do governo anterior, nosso patrocínio foi cortado – como de tantas outras companhias. Mesmo assim, estávamos nos organizando de maneira diferente e seguindo trabalhando com nossos espetáculos. Mas a chegada da pandemia foi implacável. Alguns atores e atrizes tiveram que sair do Rio, nossa sede, em busca do apoio de familiares e isso causou uma implosão na companhia. Com Neva a gente tá vivendo um momento de reconstrução. E de esperança.

Chama a atenção em seu trabalho a utilização de elementos cênicos, muitas vezes em diálogo com novas tecnologias, que se assemelham a verdadeiras instalações. Como você pensa o trabalho dos atores e atrizes – a fala, as expressões corporais, a movimentação em cena – com essas outras linguagens?

Me interessa um teatro total, que não tenha medo dos elementos que se agregam a ele, incluindo aí a tecnologia. Mas os atores são os donos do palco.

A utilização de microfones – para amplificação da voz dos atores e atrizes – está cada vez mais presente nas peças teatrais. No caso de Neva chama também a atenção a quantidade de microfones instalados no palco, compondo também uma espécie de instalação multimídia. Por que a utilização desse recurso?

Tem algumas camadas nessa ideia dos microfones. A primeira, é a vontade de colocar o texto em primeiríssimo plano, fazendo com que ele possa chegar ao público em certos momentos com detalhes de sutileza e, em outros, com a rispidez de um show de rock. A segunda, é criar um espaço onde parecesse que há um excesso de algo (no caso, muitos microfones pra poucos atores) pra que a gente percebesse a falta dos outros atores que não chegaram para o ensaio (e que talvez estejam entre os mortos do Domingo Sangrento). Então, pra nós é como se houvessem espaços que naturalmente seriam ocupados pelos outros atores da companhia – e que, agora, precisam ser preenchidos pelos que estão presentes. Na minha cabeça, tem ainda uma outra camada que se faz com a diferença de sonoridade entre os microfones, porque não são microfones iguais, eles têm características diferentes, com uma sonoridade às vezes mais natural, às vezes mais metálica. E isso pra mimpodia dar ao espetáculo em certos momentos uma ideia de documentário, em outros um ar de ficção, de rádio novela, de noticiário, enfim.

Em grande parte da peça as duas atrizes e o ator emitem suas falas (ao microfone) de frente para a plateia. Dialogam entre eles mas dá a impressão de se dirigirem diretamente ao público, como num show de música, por exemplo. É uma impressão pessoal equivocada? Ou há realmente um gesto intencional?

Neva é uma espécie de performance, é quase um manifesto, por isso essa postura em muitos momentos frontal.

A protagonista da peça é a atriz Olga Knipper, que realmente existiu, e foi esposa de Anton Tchekhov. Ela se associou a Stanislávski e Meierhold, e juntos montaram o texto A Gaivota, do próprio Tchekhov, que causou grande impacto na época. Por que esse impacto? O que a montagem trazia de diferente?

Para a época, as montagens do Teatro de Arte de Moscou traziam a revolução. Stanislávski achava o teatro da época cheio de “formas vulgares”, de um tom declamatório, abarrotado de clichês. Já ele valorizava a artesania da cena, a construção do detalhe. Era conhecido como “um criador de possibilidades de teatro”. Buscava o sentido de cada pausa, de cada olhar, de cada respiração. E encontrou no teatro de Tchekhov – que é cheio de silêncios – o veículo perfeito pra sua ideia de teatro.Nas peças de Tchekhov os acontecimentos principais acontecem fora da cena, mas o que esses acontecimentos causam nos personagens é o que importa. Isso sublinha a impotência dos personagens e aumenta a carga trágica da cena. O Teatro de Arte de Moscou captou isso tudo com muita clareza.

A Armazém Companhia de Teatro acaba de completar 35 anos de criação. Você já estava envolvido com o teatro antes disso. Nesses tempos de youtubers, influencers e celebridades BBB, com uma quantidade gigantesca de “mensagens” sendo emitidas incessantemente, disputando a atenção das multidões, mais uma vez a pergunta: a arte está se tornando irrelevante? O que leva as pessoas a se fecharem dentro de uma sala para assistir a uma encenação?

Existe um sentido de comunhão em estar numa sala de teatro. Essa forma de lidar com o agora, com o momento presente, onde é necessário se desligar do que está lá fora por algum tempo e viver algo que só será assim desta vez, esse encontro que não vai se repetir, é muito sedutor. E o teatro tem a vantagem de trazer todas as outras artes junto de si, a música, a dança, a literatura, as artes plásticas. Um espetáculo de teatro é um pouco uma soma disso tudo.

Foto de Mauro Kury
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