Como a Ancine empurra o cinema nacional. Para escanteio

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André Klotzel, diretor, roteirista, montador, técnico de som, produtor e editor cinematográfico, é um dos mais respeitados cineastas brasileiros. Ganhou dezenas de prêmios com seu longa de estreia, Marvada Carne, com Fernanda Torres, em 1986 (mais de 1 milhão de espectadores, 11 prêmios em Gramado e estrela de mais de 20 festivais internacionais). Mas há uma década que o diretor não tem um novo filme nas telas. Isso não acontece porque não tenha trabalhado nesse tempo – em 2018, ele filmou e montou o longa-metragem inédito Sem Pai Nem Mãe. Para finalizar a obra, conseguiu recursos através de um edital da Spcine, empresa municipal de cinema e audiovisual de São Paulo. O edital, de Arranjos Regionais, foi subsidiado com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que é gerido pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), parceira da Spcine.

Aí começaram os problemas. A Ancine ficou paralisada entre 2019 e 2020, por inação de sua diretoria (e má vontade política deliberada do governo de Jair Bolsonaro). Consequentemente, os recursos dos editais também entraram num limbo. Klotzel, sempre atuante na defesa dos direitos dos produtores e criadores audiovisuais, esteve à frente de uma grande mobilização da classe para desbloquear os recursos e reativar o funcionamento da agência de cinema. Klotzel encabeçou movimentações conjuntas de 7 entidades em suas ações na esfera do Ministério Público Federal e no Tribunal de Contas da União (representava a Associação Paulista de Cineastas, a Apaci, na ocasião, lutando inclusive contra o sucateamento da Cinemateca Brasileira).

Klotzel entrou então na mira do revanchismo político. Em determinado momento, a Ancine informou que seu contrato seria arquivado devido a uma regra no regulamento do FSA (regra que define que nenhum projeto pode ter mais que dois contratos advindos de chamadas públicas seletivas do FSA). Acontece que seu projeto foi uma chamada pública da Spcine (foi a Spcine que entrou na chamada FSA para ter os recursos de fazer seu próprio edital, e não os contemplados), e não uma chamada pública seletiva, uma vez que não tinha comissão julgadora. “Era uma chamada em que quem perfizesse 90% dos recursos ganhava automaticamente”.

O cineasta recorreu à Ancine uma primeira vez. A resposta da área técnica foi negativa. Então, dado o impasse, ele solicitou que a diretoria colegiada da Ancine deliberasse a respeito. “Uma vez que a diretoria deliberava pela assinatura dos contratos, também deveria deliberar sobre o arquivamento dos mesmos”. O pedido de Klotzel gerou 3 pareceres técnicos dentro da Ancine. Um parecer encaminhou para outro a questão, até que saiu um parecer definitivo de Rodrigo Albuquerque Camargo, Secretário de Políticas de Financiamento Substituto, com 5 páginas, concluindo de forma incontestável que a contratação do projeto deveria ser assinada. Camargo assinalou que as Chamadas Públicas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) “se referem àquelas realizadas pela própria Ancine ou pelo agente financeiro do FSA, o que não se aplicaria strictu senso aos editais de arranjos regionais realizados pelos entes locais”.

Apesar do parecer favorável do superintendente recomendando a contratação do filme Sem pai Nem Mãe (e outros casos análogos), a diretoria colegiada convocou uma reunião e, em apenas 3 minutos, os diretores deliberaram por arquivar o contrato, ignorando a recomendação técnica. O cineasta então entrou com um Mandado de Segurança na Justiça, mas o recurso não foi concedido e a questão foi para os trâmites jurídicos comuns, sem prazo para apreciação.

Algum tempo mais tarde, o FSA anunciou um novo edital de complementação de R$ 160 milhões no qual, para surpresa de Klotzel, não constava mais a limitação de mais de dois contratos com o Fundo, aquilo que motivara o suposto impedimento do seu filme no primeiro edital. Klotzel se inscreveu e foi habilitado pela comissão de seleção. Na fase seguinte, a de classificação, bastava tirar nota 5 para ser classificado – todos os projetos selecionados foram habilitados, menos o dele, que tirou nota 4,8. “Mas havia incoerência nas notas e pedi esclarecimentos na fase recursal. Eles me explicaram a composição das notas e a incoerência ficou clara. Um dos filmes produzidos pela minha empresa não tinha pontuado porque no Certificado de Produto Brasileiro (CPB) do filme constava que a minha produtora tinha 0% de direitos patrimoniais”. O CPB é um certificado que assegura que a obra audiovisual possa circular livremente pelo Brasil e principalmente por outros países em mostras e festivais; um documento legal, que informa as procedências do filme e é também um registro que garante os direitos patrimoniais ao diretor e produtor da obra.

O filme da produtora de Klotzel que não pontuara é Memórias Póstumas (2001, baseado no clássico de Machado de Assis), do qual o diretor detém quase que os direitos patrimoniais integrais, e a discriminação de 0% tinha sido um erro de escrituração da Ancine que o próprio setor de Registro da agência reconheceu. “No CPB, todos os produtores constam com 0%, o que é impossível – não existe filme em que ninguém seja detentor de direitos patrimoniais”. O Setor de Registro da agência corrigiu o CPB e ele ficou regular. Mas isso não desenrolou o fio do labirinto burocrático: a Ancine informou a Klotzel que, pelas regras, a situação da empresa que seria levada em conta seria aquela avaliada em 31 de janeiro de 2022, e que essa avaliação não poderia ser mudada após essa data. Ou seja: mesmo sendo um erro da própria agência, reconhecidamente (na transcrição do CPB antigo para um CPB novo, uma informação errada), ele perdera o prazo e não seria corrigido. O cineasta foi eliminado do edital. Também não aceitaram seu recurso.

Enfim: o longa-metragem Sem Pai Nem Mãe está filmado há 5 anos e o diretor não consegue finalizá-lo. Nesse período, o cinema brasileiro desabou – sem filmes para exibir, sem recursos para filmar, sem políticas de estímulo e fomento. Para pagar os direitos musicais, sem os quais o filme não existe, Klotzel teria que gastar 450 mil reais, além de outro tanto para mixagem, marcação de luz, edição de som e efeitos digitais.

O caso de André Klotzel, que tornou-se inadimplente após a via-crúcis que enfrentou, não é isolado na Ancine. Outros diretores importantes foram empurrados para o abismo burocrático, em especial aqueles que demonstraram abertamente suas divergências para com o governo fascista de Jair Bolsonaro, como Jorge Furtado, Lázaro Ramos e Wagner Moura. A marcação cerrada em cima desses cineastas tem origem política. Toda a diretoria atual da Ancine foi nomeada por Jair Bolsonaro e seguiu diligentemente, nos últimos anos, suas orientações em relação a filtros ideológicos, comportamentais e de censura explícita. Como, sabatinada pelo Senado Federal, não pode ser substituída pelo atual governo, iniciou-se uma movimentação passa-pano generalizada com o intuito de “anistiar” o grupo empossado, que tem facilidade de acomodação de circunstância – movimentação que recebe adesões até de grupos de servidores e de novos gestores do governo atual, como se a censura fosse algo passível de anistia.

Sem Pai Nem Mãe, filme inédito de André Klotzel, conta a história de Artur (Alexandre Nero), um comediante stand-up que pretende mudar de vida e escrever um livro sobre a história de uma guerrilheira dos anos 70. Ele é assaltado e levam o computador com os textos dentro, mas um aplicativo tira fotografias das pessoas que estão usando o computador roubado e as envia por e-mail. É um filme de crítica política que vai frontalmente contra as diatribes do bolsonarismo.

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1 COMENTÁRIO

  1. Jotabê Medeiros, olá.

    Primeiramente, excelente texto escrito no site Farofafá, um dos poucos sites de conteúdos autorais jornalísticos que já foi produzido desde do advento da internet. Em segundo lugar, gostaria de me solidarizar com o colega André Klotzel, que como muitos colegas cineastas e produtores presentes nas diversas sessões de associações de cinema pelo território brasileiro, vem lutando para que seu projeto audiovisual possa ser, de fato, encontrado uma solução para realização ou finalização por meio do financiamento da produção com os recursos da Ancine.

    Neste últimos seis anos, a Ancine se tornou uma “pedra no sapato” da cadeia produtiva do audiovisual nacional e, portanto, contraproduzente para o cinema nacional. O que realmente causou esse movimento foi a ganância sobre os recursos públicos gerados pela Condecine para fazer o setor se sustentar que diabte do grande impulso de politicas publicas do Programa Brasil de Todas as Telas (2014) foi capaz de capitanear um aumento considerado no orçamento do FSA para o audiovisual nacional. O bolo cresceu e a suspeita de que não seria repartido entre as partes se concretizou, criando uma “insegurança jurídica” e “fragilidade política” nas questões admistrativas da Ancine/FSA.

    A partir do golpe parlamentar de 2016, a agenda do setor se viu isolada e criticada nos anos dos governo Temer e Bolsonaro no Congresso Nacional, com audiências nas comissões legislativas que tratam do assunto na capital federal. Algumas importantes inciativas de discussão no Congresso Nacional foram capazes de defender da entrada de filmes blockbuster estrangeiros em mais da metade das salas de cinema do Brasil e na regulamentação da Cota de Tela como mecanismo de proteção e promoção do cinema brasileiro.

    Assim, a burocracia maliciosa criada na Ancine a partir de 2016, macula o projeto criado por todos nós do cinema brasileiro presente em corpo e mente no 3° Congresso Brasileiro de Cinema, de tornarmos uma nova potência audiovisual no mundo, dividindo a atenção com os projetos audiovisuais da Índia, China, Estados Unidos, Coréia do Sul, França, Inglaterra, Nigéria e Espanha nas inúmeras plataformas de streaming e canais de televisão multiplicados nestes ultimos anos.

    Mas o pior aconteceu na pandemia, quando milhares de profissionais técnicos ficaram desamparados financeiramente, porque a produção parou em razão do Covid-19, mas intensificada na inoperância burocrática da Ancine de mitigar os impactos no setor que se tornou uma válvula de escape para milhões de brasileiros isolados em seus lares e trabalhos. Não pudemos aproveitar essa oportunidade necessária e criamos mais uma dificuldade na cadeia produtiva brasileira. Foi preciso o auxílio de empresas transnacionais e entidades internacionais para apoiar aqueles que gicaram sem emprego dutante a crise sanitária de 2020/2021.

    Aos produtores que tiveram muitas perdas financeiras e pessoais, o caminho foi retomar atividades até então deixadas no passado. Muito colegas voltaram suas atividades para pequenos projetos comerciais, ao invés de darem avanço ao crescente processo de fortalecimento do setor audiovisual no Brasil, tão saudosamente recordados nos tempos dos primeiros governos de Lula e Dilma.

    Contudo, hoje neste novo momento político, uma porta que se fecha possibilita que outra porta seja aberta. Por isso, estamos confiantes neste novo governo Lula para o setor, pois a pauta cultural da economia brasileira se tornou uma das bandeiras do programa do governo federal e, dessa forma, aguardamos o destrave desta “bur(r)ocracia maliciosa” que impede a uma nova e sustentável retomada do cinema brasileiro.

    Agora , com a liberação dos recursos das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo para os Estados e Municípios em 2023, poderemos respirar e acreditar num futuro promissor. Como cineasta, produtor, pesquisador e professor de cinema e audiovisual na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, assim como em escolas técnicas e públicas da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, poderei confirmar novamente uma das premissas que impulsionam o nosso cinema nqcional desde os tempos de Humberto Mauro, quando fazíamos cinema silencioso a cerca de 100 anos atrás: “o brasileiros gosta de se ver na tela, mas do que qualquer astro ou estrela estrangeira”.

    Evoé para nosso cinema nacional. Oxalá que a Ancine volte a lutar pelo cinema nacional. Viva a cultura brasileira que alimenta nossa sociedade democrática.

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