Um dos maiores espetáculos de teatro popular do Brasil volta às ruas do Recife entre amanhã (23) e domingo (25)
O imaginário popular acostumou-se com a ideia do “Natal congelado”: Papai Noel trajando roupas de frio, viajando em um trenó puxado por renas, entrando nas casas por chaminés para distribuir presentes às famílias que se aquecem em volta das lareiras.
O “Baile do Menino Deus” se contrapõe a este ideário consolidado com a ajuda de comerciais de refrigerante e todo o consumismo que acabou por sequestrar o sentido original do Natal: o nascimento de Jesus Cristo.
Um dos maiores espetáculos de teatro popular de rua do Brasil, ele o faz a partir de formas de celebrar o Natal que se preservaram sobretudo na região Nordeste, aliando passagens do texto bíblico a manifestações como reisado, lapinha, pastoril, cavalo marinho, guerreiro, chegança e boi de reis, em um espetáculo recheado de música e dança, recorrendo ainda a sortilégios, brincadeiras e a invocação de criaturas fantásticas – como a Burrinha Zabilin, o Jaraguá e o Boi.
O espetáculo, que costuma atrair um público médio de 70 mil espectadores, este ano tem direção de Ronaldo Correia de Brito, que assina o texto ao lado de Assis Lima, produção de Carla Valença (Relicário Produções) e encenação de Cibele Forjaz.
As apresentações do “Baile do Menino Deus” acontecem de sexta (23) a domingo (25), sempre às 20h, na Praça do Marco Zero, Recife Antigo, Recife/PE. O espetáculo tem acesso gratuito, classificação livre e duração de uma hora, com acessibilidade para cadeirantes, audiodescrição e intérprete de Libras.
Sobre o “Baile do Menino Deus”, Farofafá conversou com exclusividade com o escritor, médico e dramaturgo Ronaldo Correia de Brito e com o cantor e compositor Silvério Pessoa, que integra o elenco e é doutor em Ciências da Religião.
ENTREVISTA: RONALDO CORREIA DE BRITO E SILVÉRIO PESSOA
ZEMA RIBEIRO – O nascimento de Cristo é talvez a mais conhecida história do planeta e sua encenação é certamente o espetáculo mais repetido em teatro ou cinema. A seu ver, o que leva as pessoas a verem e reverem uma história cujo final já é conhecido?
RONALDO CORREIA DE BRITO – As pessoas gostam de histórias que se repetem e se reinventam. O mito do nascimento divino é anterior ao Cristo, surgiu no Oriente Médio e na Ásia, bem antes do cristianismo. O mesmo aconteceu com o mito da Mãe Virgem. A Igreja Católica se apropriou desses dois mitos do mundo pagão, quando começou a se expandir o cristianismo e a doutrinar os povos além de Roma. O Cristo foi assimilado como se fosse Adônis e há uma representação da Virgem Maria na catedral de Chartres [na França], que é semelhante à da divindade egípcia Isis. No “Baile do Menino Deus” atualizamos o nascimento divino partindo de autos populares da tradição universal, como o Reisado e a Lapinha. João Cabral [de Melo Neto, poeta] tinha feito isso em “Morte e Vida Severina”, um auto natalino sobre o nascimento de um menino Severino. Nós incorporamos a dramaturgia de uma casa que precisa ser achada e uma porta que precisa ser aberta para a celebração do nascimento do Menino Deus, que, ao fim, é qualquer menino. Esse tema metafísico é a estrutura do auto de Reisados. Durante o tempo que dura o espetáculo, todos se ocupam em achar a casa e abrir a porta para celebrar a vida e o sagrado e, simbolicamente, desfazer as fronteiras que separam os povos e suas culturas.
ZR – “O Baile do Menino Deus” é uma ópera popular, encenada a céu aberto. Que outros aspectos você destacaria como particularidades deste espetáculo?
RCB – O “Baile” também pode ser visto como uma cantata cênica ou teatro de rua. O modelo do Reisado, que nós assimilamos, é o mesmo da tradição popular universal como o Nô, o Kabuki, o Kathakali, a Ópera de Pequim, o teatro de Bali. Artistas europeus e estadunidenses foram ao Oriente em busca de inspiração, quando quiseram mudar os cânones da dança e do teatro que praticavam. Exemplo disso são [o dramaturgo e cineasta] Peter Brook, [a bailarina, coreógrafa e pedagoga] Ruth Saint Denis e [o bailarino] Ted Shawn, e o próprio [dramaturgo e poeta Bertolt] Brecht que encontrou o efeito do distanciamento no teatro chinês. Nós que fazemos o “Baile do Menino Deus” não precisamos viajar tão longe. Aqui no Nordeste do Brasil se guardam tradições centenárias do teatro com música, dança e representação.
ZR – Um dos diferenciais do espetáculo é a incorporação de elementos da cultura popular ao enredo da celebração natalina. Como é se equilibrar nesta linha tênue entre o sacro e o profano?
RCB – O equilíbrio entre sagrado e profano é o maior trunfo do “Baile”. Os dois palhaços Mateus representam o burlesco e o cômico; a família formada por José, Maria e o Menino Deus, o sagrado. Insisto que estamos alicerçados numa tradição de vários séculos. “Baile do Menino Deus” é uma forma de dramaturgia trazida ao Brasil pelos ibéricos, incorporada por índios através da doutrinação jesuítica e de outras ordens religiosas, e transformada pelos africanos escravizados. Esse teatro natalino em uso no Brasil até quase metade do século XX (em Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Norte e Nordeste) muda radicalmente com a chegada de imigrantes italianos, alemães, poloneses e ucranianos, pinheiros, neve, Papai Noel, renas e trenós. Os personagens da cena natalina, Jesus, José, Maria e Reis Magos são expulsos e esquecidos nas celebrações, dão lugar aos novos personagens dos climas frios. A pá de cal sobre as antigas Noites de Festa é jogada pela cultura estadunidense. Jesus, José, Maria e o Menino desaparecem, são escorraçados e, no lugar deles, celebra-se o consumo, o gasto, o excesso. Já não há mais equilíbrio entre sagrado e profano porque não há mais sagrado. [O cineasta] Federico Fellini decreta o fim da mitologia cristã. Vence o paganismo do mercado (a direita neoliberal odeia essa afirmação), o Natal sem Jesus.
ZR – Quais as expectativas em relação ao reencontro com o público após dois anos em formato virtual, devido ao isolamento social imposto pela pandemia de covid-19? Lembrando sempre que a crise sanitária ainda não acabou.
RCB – A emoção de encontrar um público de milhares de pessoas, durante três noites, é bem diferente da emoção de ser visto nas telas. Preferimos a rua, o corpo a corpo com as pessoas. Sim, ainda existe Covid e os Mateus até comentam isso numa cena. Mas estaremos ao ar livre e com todos os cuidados preventivos.
ZR – Não deve ser simples reger um espetáculo do tamanho d“O Baile do Menino Deus”. Quais as dores e delícias de levá-lo literalmente para a rua?
RCB – O “Baile do Menino Deus” é uma obra aberta, com os autores vivos e está em permanente construção e desconstrução. É muito trabalhoso fazer o espetáculo, me consome um ano. Mas o saldo é de alegria. Gosto de trabalhar em parceria com músicos, atores, cantores, bailarinos e técnicos. Sinto-me vivo, estimulado. Passei a vida estudando, pesquisando, acumulando conhecimento. É bom poder passar esse conhecimento à geração mais jovem. As pessoas que trabalham comigo dão a vida pelo espetáculo. O público é de uma fidelidade, um encantamento que comove. Tudo isso me estimula a manter-me à frente dessa equipe de quase 300 pessoas.
ZR – São quase 39 anos de encenação, 19 deles no Marco Zero, cartão postal recifense. Esta retomada mantém o texto original, com acréscimos, e a música original de Antonio Madureira, com novos arranjos e composições. Gostaria de ouvi-los sobre este diálogo entre a dramaturgia e a música, que ganha destaque, com a mudança da orquestra do fosso para o palco, e também a influência do Movimento Armorial.
RCB – Sim, este ano tudo é novo, embora se mantenha a espinha dorsal do texto e as 12 músicas da primeira encenação. Todos os arranjos foram refeitos por Rafael Marques [bandolinista e cavaquinhista] e abandonamos o modelo clássico de orquestra com instrumentos de cordas friccionadas e coro adulto com quatro vozes. Apostamos na concepção popular do “Baile” original. O espetáculo ficou mais leve, mais alegre, pulsante. São cerca de 26 músicas, o que significa um grande acréscimo ao disco de 1983, lançado pelo selo Eldorado. O compositor Antonio Madureira, meu parceiro de muitos trabalhos, faz parte do Movimento Armorial, mas Assis Lima e eu não fazemos. A música do “Baile” não é armorial. [O escritor, dramaturgo, romancista e poeta] Ariano Suassuna jamais convidaria uma jovem cantora negra do rap e do trap para o papel de Maria. Nosso espetáculo incorpora a periferia do grande Recife. No ano passado, os Reis Magos chegavam à cena do nascimento com um bando de dançarinos de hip hop.
ZR – Silvério, além de atuar no espetáculo, você também é um pesquisador do tema. Em que medida estas dimensões se ajudam?
SILVÉRIO PESSOA – Meu mestrado foi em Ciências da Religião, tendo a religiosidade popular como eixo da pesquisa. Foi um estudo comparativo entre a religiosidade popular do sul da França e de Pernambuco, com alguns registros de procissão, peregrinação, devoções e locais sagrados. O “Baile do Menino Deus” é uma expressão devocional da religiosidade popular, adaptativa, fusionada, hibridizada, no qual o texto bíblico sagrado é adaptado, reconfigurado para a essência do povo do Nordeste e suas brincadeiras, a ciranda, o pastoril, o reisado, os personagens imaginários que fazem parte da brincadeira: a burrinha Zabilin, o Jaraguá, o Boi. É um espetáculo cigano que tem migrantes, imigrantes, as ciganas, os símbolos sagrados tão significativos na história do nascimento do menino, os anjos, os Reis Magos sendo os reis do maracatu, dessa expressão tão africana pertencente ao Nordeste. Então, eu me sinto, no palco, praticamente vivenciando, incorporando todo esse universo que eu estudei, que eu ainda estudo, eu tenho vínculo com a Universidade Católica [de Pernambuco], aqui no departamento de Ciências da Religião, na pós-graduação, então é uma forma, há 18 anos que eu vivencio todo esse campo, o campo da cultura popular religiosa, fazendo parte do espetáculo. Estão ali lado a lado o artístico, o meu lado do compositor, do intérprete, o músico, mas ao mesmo tempo do personagem, da dramaturgia, da religiosidade popular, do palco, da cenografia. Pra mim um dos momentos mais emocionantes do ano é pisar nesse palco do “Baile do Menino Deus” e poder vivenciar toda essa magia na qual eu também faço parte como pesquisador.
ZR – Como vai a agenda de shows de “Sangue de amor”, seu álbum mais recente, lançado este ano?
SP – O “Sangue de amor” é uma aventura pelos rumos diversos dessa aventura chamada afetividade, emoção, amorosidade, amor. O disco começa com a morte do amor e termina com a esperança. É toda uma narrativa, é como se fosse, como se fosse não: é uma epopeia, uma grande aventura o “Sangue de amor”. O “Baile do Menino Deus” eu reservo toda a minha agenda para estar em todos os ensaios, com todo o elenco e isso vai até o dia 25 de dezembro, então praticamente eu encerrei os shows, fiz agora recentemente duas apresentações de shows, no palco e tudo mais, e o “Sangue de amor” volta no dia 25 de janeiro, exatamente no projeto Janeiro de Grandes Espetáculos, aqui em Recife, às 20h, no Teatro Santa Isabel. Nós estamos tentando uma temporada em São Paulo, nós estamos tentando uma temporada no Rio de Janeiro, nada fácil, aguardando essa retomada das políticas públicas culturais no Brasil, muita esperança renovada, agora com o novo momento político, então 2023 promete uma circulação maior do “Sangue de amor”.
ZR – “O Baile do Menino Deus” se contrapõe a um modelo de Natal cristalizado no imaginário consumista globalizado ao trazer o evento cristão para a realidade e a ambiência nordestina, em vez de Papai Noel andando de trenó na neve, colaborando para evidenciar manifestações culturais típicas da região, como reisado, lapinha, pastoril, cavalo marinho, guerreiro, chegança, boi de reis. Gostaria de ouvi-los sobre esta dimensão do espetáculo.
RCB – Para responder essa pergunta, que em parte já respondi, vou comparar o “Baile do Menino Deus” feito no Recife com o “Natal Luz” de Gramado. Aqui somos mestiços de negros, indígenas e brancos, sobretudo portugueses. Aqui houve mestiçagem racial e cultural. Já falei antes que apesar de todo o esmagamento da cultura estadunidense e europeia, a cultura popular resultante dessa mestiçagem ainda é forte e poderosa. O Sul colonizado por brancos italianos, alemães, poloneses e ucranianos incorporou mais facilmente o modelo de Natal com Papai Noel e renas. E por aqui é comum se ouvir de famílias ricas e brancas dizerem que é maravilhoso o Natal de Gramado porque as pessoas que participam são brancas, louras e de olhos azuis. Vivemos um apartheid. Na recente eleição, fomos massacrados por eleger um candidato de esquerda. É o Brasil. Fazer o quê?
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Veja o teaser do espetáculo:
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Ouça as músicas do espetáculo: