O bailão do Mestre Ambrósio

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Trinta anos após sua fundação, 18 anos após sua dispersão, a banda pernambucana Mestre
Ambrósio fez uma reentré triunfal no palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, neste último final de semana, entre os dias 4 e 6. Casa lotada toda noite, clima de celebração, ritmo de baile, de Carnaval de Olinda, de metrô eufórico indo para a Paulista comemorar vitória de Lula, de exorcismo de todas as opressões, liberação & comunhão. O sexteto original do Mestre Ambrósio, com Siba, Hélder Vasconcelos, Maurício Alves, Sérgio Cassiano, Mazinho Lima e Eder O Rocha, estava de novo no palco. Os “velhinhos”, como brincou Hélder Vasconcelos, iriam dar pinotes menos acrobáticos por conta da adaptação à passagem do tempo, mas a verdade é que isso não era verdade, Hélder mesmo parece um cabrito.

No meio da apresentação, o compositor, guitarrista, cantor, rabequeiro e produtor Siba divulgou um pequeno manifesto cultural. Como o manifesto é de alcance e urgência gigantescos (embora o texto seja de curta duração), achei por bem iniciar a resenha do show já pelo discurso de Siba, que foi assim:

“Não existiria Mestre Ambrósio sem a cultura popular do Brasil. Também não existiria a cultura brasileira sem a cultura popular. Isso, 30 anos atrás, bastava a gente dizer que já ficava clara qual era a nossa proposta artística e a nossa posição política. Mas 30 anos se passaram e as coisas mudaram bastante. E hoje é preciso dizer um pouco mais. Primeiro, é preciso dizer que essa separação que a gente faz entre cultura brasileira e cultura popular, ela só existe porque, em 500 anos, milhões de pessoas que construíram a riqueza desse país foram excluídas do resultado dessa riqueza. Também é preciso dizer hoje que essa cultura popular que a gente tanto enaltece, ela só existe ainda, ela só não foi extinta ainda, porque prevaleceu no País o mínimo necessário de espaço de ação e pensamento democrático. Em outras palavras: a gente acabou de ter uma grande vitória, uma grande vitória que a gente tem que comemorar, tem que fazer um Carnaval do caralho, mas a gente não pode perder do horizonte que é preciso expandir, é vital lutar, cada um a seu modo e seu jeito, pra gente expandir esse mínimo, esse sempre mínimo espaço de pensamento e ação democrática nesse País. Para, um dia, quem sabe, nossos filhos, nossos netos, bisnetos, terem um País de democracia total e igualdade radical. Mas, antes disso, que a gente talvez não veja tão fácil, a gente é só uma banda, né? A gente veio fazer uma festa para vocês. Mas talvez o que a gente tenha de melhor pra dizer com nossa música seja que talvez tenha chegado a hora de a gente levar de fato a cultura popular a sério, em vez de olhar para ela como raiz, passado, origem, matéria-prima.
Olhar para ela como vanguarda de um País possível. Ao mesmo tempo que, nesse país, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, às vezes dezenas, centenas, milhares de pessoas se juntam para construir juntas uma explosão de beleza, de alegria, de inteligência, de compartilhamento do presente momento nas festas populares, talvez seja a hora de a gente encarar isso como o futuro possível. E quem não for contra isso vai se arrepender, em nome de Deus, dos Orixás!”.

Não se trata de um diagnóstico recente de Siba e seus colegas de banda. A proposta de
amarrar as pontas soltas da cultura popular foi linha e anzol da pescaria do grupo desde sempre. O primeiro disco deles, de 1996, já embutia em uma de suas canções, Três Vendas (a terceira que tocaram na noite) uma linha de catimbó de Mestre Laurentino, cuja audição no nosso futuro se deu porque as Missões Folclóricas de Mário de Andrade gravaram sua execução lá na década de 30.

O show abriu com José, a primeira canção do lado A do primeiro disco da banda, Mestre
Ambrósio. José foi uma senha para a plateia se dividir em dois grupos: nas laterais, o público que dançava; nas poltronas, o público que queria dançar também, mas faltava pista. Curioso que o verso final de José é o seguinte: “Terra alheia, pisa no chão devagar”. Foi justamente esse mito, de que existam dois Brasis, que o Mestre Ambrósio questionou ao longo de todo o show. “Não foi somente o Nordeste que elegeu Lula, gente do Brasil todo votou nele”, ressaltou Hélder, ao receber um cartaz de agradecimento pela façanha eleitoral. Hélder está correto. Aqui mesmo, na maior metrópole da América Latina, lar por direito de todo migrante que a construiu, a vitória sobre o fascismo foi majoritária – 53% dos votos, ante 46% do adversário.

A canção seguinte do show, O Povo, reiterava essa afirmação política e social do Mestre Ambrósio: “O povo liberta o povo”, declamou Hélber, que mostrou um absurdo domínio percussivo em um estupendo desfile de instrumentos. Conforme se sucediam, engolfadas pela potência do surdo de Eder O Rocha, as canções iam revelando também sua face atemporal, muitas vezes proféticas, reveladoras. “Na hora em que o tempo desaparece/Transforma em pé de serra o calçadão”, diz a letra de Pé-de-Calçada, de Siba.

As visões surrealistas de Se Zé Limeira sambasse Maracatu, com Siba à frente da plateia desafiando o público a repetir os versos, pareciam convocar a uma procissão de visionários de toda ordem, um clássico precoce de apenas 30 e poucos anos. Recorrendo à expressividade de instrumentos que podem sugerir uma modernização da tradição (rabeca e contrabaixo elétrico, guitarra e fole de 8 baixos), o Mestre Ambrósio na verdade apenas atualiza um procedimento que Pixinguinha, por exemplo, já tinha lançado mão na década de 1920, ao incluir no seu grupo uma bateria e um saxofone trazido das big bands do jazz.

Fuá na Casa de Cabral e Baile Catingoso, com seu apelo de música fora de portas, ao ar livre, têm o condão de nos abrir um portal para avaliar, com a razão (porque o coração já estava capturado antes mesmo do show começar), a formidável capacidade de permanência da cultura popular, do seu apelo nascido da alegria e do desarme das coisas obrigatórias, impostas.

O Brasil que se moderniza não é sempre o Brasil fundamental, o Brasil dos significados. Por exemplo: a Feira de Caruaru, cidade onde o Patriota do Caminhão subiu no para-brisa da estultice política, também é o nome da canção seminal de Onildo Almeida que Gonzagão carregou para o mundo, que o Mestre Ambrósio gravou, uma pedra de toque da excelência da cultura popular.

 

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