Rapper paulista Kayode disponibilizou hoje o álbum “Flow da pele” nas plataformas de streaming
Antecipando o álbum, Kayode deu uma amostra da potência de seu recado com o videoclipe/curta-metragem “Podcast”/“Pedra da memória”. O papo é duro, seco, direto: o rapper coloca o dedo na ferida em questões cruciais de um Brasil atual. Racismo e violência policial estão na pauta, bem como ancestralidade e a história da música feita por pretos no Brasil, entre outras questões sociais, com pitadas de lirismo, vinhetas de Tim Maia e Wilson Simonal e participações especiais de Victor Xamã e Clara Lima.
O citado videoclipe alude ao covarde assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, torturado até a morte, em maio passado, por agentes da Polícia Rodoviária Federal, em Sergipe. “Flow da pele” é robusto e foge aos padrões impostos pela indústria fonográfica: em tempos de singles, o rapper convida o ouvinte a refletir sobre diversos temas ao longo de suas 18 faixas.
Por telefone, de São Paulo, Kayode conversou com exclusividade com Farofafá.
ZEMA RIBEIRO – A primeira coisa que chama atenção no teu disco é o número de faixas, 18, algo que não é muito comum nestes tempos em que os artistas estão dando preferência por lançar singles soltos. Qual foi a tua intenção ao fazer essa opção?
KAYODE – Pra ser bem sincero, o número de faixas acabou sendo meio que por acaso. Eu tinha bastante coisa pra falar e eu não ia negar ou excluir nada do que está ali. Apesar dessa tendência, de faixas menores, com menos faixas nos trabalhos, eu achei que era necessário, eu precisava me expressar e o número de faixas, acredito eu, poderia até ter sido maior.
ZR – Fala um pouco do processo de feitura do álbum, composição, estúdio, quem está contigo, entre bandas, participações.
K – Eu trabalho aqui na Yalla Rec, em São Paulo, eu costumo produzir com o Paiva Prod [Caio Paiva, que assina a direção de “Flow da pele”], na verdade foi ele quem fez toda produção desse álbum, fez de certa forma uma curadoria dos músicos. O processo de criação foi bem pessoal, eu escrevi algumas faixas em casa, escrevi algumas aqui no estúdio, o Paiva me deu uma direção muito boa. Eu estou tocando mais na questão técnica, direção artística também. O canto, eu me considero um cantor-músico, meu disco é bem musical, então, foi feito, elaborado em conjunto, entre eu e o Paiva, nessa questão mais artística e musical da parada, e toda a parte visual, a parte conceitual, a gente sentou e conversou aqui na Yalla Rec, e fomos desenvolvendo as ideias aos poucos.
ZR – Antes do lançamento do disco você lançou o clipe-documentário, que une “Podcast” e “Pedra da memória”, oito minutos. Como é que você avalia o recrudescimento do racismo e da violência policial durante o governo neofascista de Jair Bolsonaro?
K – Eu vou ser sincero: sempre foi muito ruim. A questão é que durante o governo Bolsonaro se tornou uma coisa mais escrachada, uma coisa mais relativizada, saca? Sempre foi muito ruim, mas todo mundo fez de tudo pra esconder. Durante o governo, através desses slogans escrotos pra caramba, de “bandido bom é bandido morto”, com um lado tomando tiro, bala perdida, virou uma coisa normal. Eu acredito que muita coisa que o próprio presidente fala, essas coisas acontecem com certa frequência, viraram uma coisa comum. A gente nunca vai achar que é normal, mas viraram uma coisa comum. Não só na questão policial, mas a violência racial, a violência contra LGBTQIA+, enfim, [contra] toda essa população periférica.
ZR – Ainda sobre o videoclipe, ele evoca numa cena o assassinato, a tortura até a morte de Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Ele termina com uma pergunta que eu sei que a resposta não depende de ti, mas eu queria te fazer: até quando?
K – Pois é, essa é a questão. Todo esse curta-metragem traz esse apelo. A gente fala que isso acontece, a gente tem que estar debatendo, e a pergunta é: até quando? Eu, sendo bem sincero e humildemente, não consigo te responder, a gente está na luta pra que a gente consiga reduzir a frequência com que isso acontece, mas de fato é impossível a gente dizer até quando isso vai acontecer.
ZR – O título de uma das faixas do disco é “Pedra da memória”, que é uma das que está também no clipe. Uma pergunta de curioso: você conhece, já ouviu falar do livro e documentário homônimos da contrabaixista e pesquisadora Renata Amaral? É um trabalho em que ela faz uma ponte entre terreiros de religiões de matriz africana brasileiros e africanos.
K – O título da faixa, na verdade, é inspirado nesse documentário. Eu conheci esse documentário através de uma produtora cultural que trabalha aqui em São Paulo, a Ciça Pereira. Ela uma vez compartilhou esse documentário comigo, eu assisti, e é exatamente o que eu trato na música, como a ancestralidade vive, pessoas do outro lado do planeta, como isso é tão vivo na gente através da música, muitas vezes a gente nem sabe que acontece lá na nossa casa, que é o continente africano. O título é baseado e só existe esse título por causa do documentário.
ZR – Tim Maia e Wilson Simonal são evocados em vinhetas do disco, Rincon Sapiência é citado na última faixa [“Nossa voz”]. Eu queria te ouvir mais um pouco sobre influências de modo geral.
K – Mano Brown, KL Jay, Ice Blue são grandes referências. Eu tenho um carinho muito grande pelo trabalho do artista Don L, eu gosto muito do Amiri, não sei se você já ouviu falar, mas é um rapper aqui de São Paulo, também muito bom. Eu tenho referências que de certa forma são semelhantes ali, em cima da música, da causa. Em questão de música brasileira mesmo, eu acho que eu trouxe o Tim e o Simonal por ter uma questão mais de identificação também.
ZR – A gente ainda está no meio da pandemia de covid-19, apesar da diminuição dos casos, de contágio e de óbitos. Como é que está o processo de divulgação do álbum, a agenda?
K – A gente ainda está se organizando, tentando estruturar. A gente está esperando ver como as pessoas vão reagir à arte.
*
Ouça “Flow da pele”: