A anunciada extinção da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento Cinematográfico Nacional) vai fazer sobrar cerca de R$ 200 milhões a R$ 300 milhões anuais no caixa do Grupo Globo, um dos maiores contribuintes do tributo. O imposto, além de incidir sobre a exploração comercial de obras audiovisuais em cada um dos segmentos de mercado (salas de exibição, vídeo doméstico, TV por assinatura, TV aberta e outros mercados), de taxar a remessa ao Exterior de rendimentos decorrentes da exploração de obras cinematográficas e videográficas (aquisição ou importação), também é devido pelas concessionárias, permissionárias e autorizadas de serviços de telecomunicações que prestam serviços que se utilizem de meios que possam distribuir conteúdos audiovisuais.
A proposta de extinção da Condecine em 2023 foi enviada ao Congresso na semana passada por Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro. Sua adoção implicaria em o Estado brasileiro abrir mão da arrecadação de 1,2 bilhão de reais por ano em impostos – estima-se que a Globo pague de Condecine em torno de 30% dessa arrecadação, por seus múltiplos negócios na área.
O carro-chefe do Grupo Globo hoje é o sistema Globosat, segunda maior empresa da holding, e que paga o tributo por toda sua operação. A isenção que Paulo Guedes está proporcionando à Globo é praticamente igual a todo o lucro líquido da empresa – tirando do lucro operacional as despesas todas, sobrou no ano passado para os acionistas cerca de R$ 225 milhões. Ou seja: se a Condecine cai, o lucro da Globo pode dobrar, porque a isenção vai impactar diretamente no lucro operacional da companhia.
Curiosamente, desde que foi revelada a intenção do governo de extinguir o tributo, acabando consequentemente com a Agência Nacional de Cinema e com o financiamento dos filmes independentes brasileiros, nenhum veículo jornalístico do Grupo Globo noticiou o fato. Também a atual direção da Ancine não se pronunciou até agora, embora seja a agência a autarquia mais atingida pelo fim do tributo. Isso levou a Associação dos Servidores Públicos da Ancine (Aspac) a soltar na manhã desta segunda-feira, 5, uma nota apontando a responsabilidade da diretoria e todas as suas derrapadas recentes na gestão do audiovisual brasileiro.
LEIA A ÍNTEGRA DA CARTA DOS SERVIDORES DA ANCINE:
Aos Senhores
Alex Braga Muniz
Vinicius Clay Araujo Gomes
Tiago Mafra dos Santos
Carla Sobrosa Mesquita Monsores
Diretores da Agência Nacional do Cinema
Escritório Central – Avenida Graça Aranha, 35
Centro – Rio de Janeiro – RJ – Cep 20030-002
Assunto: Solicitação de diálogo com os servidores e demandas diversas
Senhores Diretores da Agência Nacional do Cinema,
1. Há mais de um ano a Associação dos Servidores Públicos da Ancine vem tentando
agendar reunião com a atual diretoria da Ancine, visando construir um diálogo
colaborativo para melhorias na gestão da agência, tanto com relação a questões de
gerenciamento interno quanto com relação às políticas audiovisuais brasileiras, que
vivem momento extremamente delicado. Enviamos diversos e-mails e ofícios aos
diretores da agência, e nunca obtivemos qualquer resposta. Sendo assim, buscando
alguma forma de diálogo institucional, resolvemos enviar formalmente o presente ofício
solicitando novamente uma reunião, e elencando nossas principais preocupações e
demandas, na esperança de que desta vez os servidores da agência não sejam
ignorados. Aproveitamos ainda para solicitar disponibilização do auditório da agência
para realização de assembleia dos servidores no dia 16/09/22, a partir das 15h.
2. Recentemente houve ameaças ilegais de desligamento do Programa de Gestão por
supostos erros de preenchimento do SISGP, um sistema extremamente falho. Para
piorar, servidores foram sumariamente excluídos do Programa de Gestão sem qualquer
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aviso prévio, não por qualquer inexecução dos planos de trabalho, mas por problemas
do próprio SISGP. Este tipo de desligamento não tem qualquer amparo legal ou
normativo, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses da RDC 112 da
Ancine ou da IN 65 do Ministério da Economia. Além disso, a exclusão sem comunicação
prévia fere o devido processo legal e não atende às boas práticas da gestão de recursos
humanos, contrariando o interesse da própria Administração Pública e piorando o clima
organizacional. Ademais, há conflitos entre o atual entendimento do Gerência de
Recursos Humanos com a IN 112 e com as próprias orientações prévias da mesma GRH,
registrados em vídeos de treinamento. Lembramos ainda que o Plano de Gestão de
Pessoas 2022-20231 (que só foi oficialmente publicado no último dia 02/09/2022, após
questionamentos da Aspac) não vem sendo cumprido, pois as ações 5 e 6 do Plano, que
tratam das melhorias necessárias ao Programa de Gestão não foram implementadas:
aperfeiçoamentos normativos; melhorias no SISGP; correlações entre desempenho,
clima organizacional, prática de valores, efetividade de ações de aprendizagem, etc.
Considerando que estas são exatamente as demandas dos servidores, solicitamos
realização de Consulta Interna para que os servidores possam opinar sobre as melhorias
necessárias ao Programa de Gestão. Considerando que o PG, diante das falhas
constatadas, claramente ainda precisa passar por um período de adaptações e
melhorias, solicitamos ainda que seja revogado o injusto e ilegal desligamento dos
servidores já sumariamente excluídos, de modo a que todos os servidores da casa
possam participar do próximo ciclo do PG, se assim o desejarem. E considerando que o
Secretário de Gestão Interna invocou para si mesmo a condição de instância recursal
máxima nas decisões relativas ao Programa de Gestão, solicitamos ainda que a Diretoria
Colegiada emita orientação para o cumprimento da Lei 9.784/99, e a própria DC seja
reconhecida como instância recursal no âmbito administrativo.
3. Segundo o Gerente de Recursos Humanos, o atual Programa de Qualidade de Vida não seria um instrumento de apoio à saúde e qualidade de vida de todos os servidores, apenas um “benefício” concedido a título de “recompensa não-remuneratória” àqueles servidores que cumprem as “entregas” esperadas, excluindo assim tanto servidores
supostamente “improdutivos” quanto aqueles em licença. Questionado sobre o fundamento normativo desta interpretação excludente, o Gerente de Recursos Humanos alegou que se tratava de determinação do “Plano de Gestão de Pessoas 2022-2023”. Ao ser solicitado a conceder acesso a tal Plano de Gestão de Pessoas, o GRH não respondeu, o que obrigou a Aspac a recorrer à CGU, quando descobrimos que a Ancine não possuía até então sequer um Plano de Gestão de Pessoas publicado, o que só foi feito após nosso questionamento, na última sexta-feira. Considerando que o Plano de Gestão de Pessoas recém-publicado tem orientação voltada à saúde e bem-estar dos servidores como pré-requisito necessário a sua produtividade, a interpretação excludente do GRH contraria diretamente o próprio Plano que ele invoca como fundamento. Assim, solicitamos que o Plano de Gestão de Pessoas recém-publicado seja devidamente cumprido, e que todos os servidores da Ancine possam usufruir do Programa de Qualidade de Vida / Programa de Bem-Estar e saúde do servidor.
4. Na última semana o governo federal enviou ao Congresso, no âmbito da Lei Orçamentária Anual de 2023, a proposta de extinção da Condecine, que é a principal fonte de financiamento do Fundo Setorial do Audiovisual. Esta proposta coloca em risco não só o FSA, mas a própria continuidade das políticas públicas audiovisuais, representando risco para a própria finalidade da Ancine. Outra medida recente preocupante foi a implementação, por parte do Ministério da Economia, do Selo de Qualidade Regulatória, visto pelas outras agências reguladoras como ingerência indevida em sua autonomia técnica. Nos preocupa também a proposta do GT4 para regulação dos serviços de VoD que não prevê cotas de conteúdo nacional, e estabelece alíquota máxima de Condecine sobre faturamento de 1%, que na prática seria reduzida a 0,27% ou isenta. O fim da cota de tela para salas de exibição tampouco encontrou qualquer resistência institucional da Ancine, cujas únicas participações técnicas no debate público audiovisual nos últimos anos foram para defender o fim do direito à meia-entrada e a suposta necessidade de “flexibilização” da regulação do mercado de TV paga. Considerando o enorme impacto destas medidas nas atividades finalísticas da Ancine, e que a agência é (ou deveria ser) a principal referência técnica no debate público sobre políticas audiovisuais, solicitamos que a agência emita publicamente seu posicionamento técnico sobre tais medidas/propostas, e realize a defesa institucional da sua autonomia técnica e da continuidade das políticas audiovisuais.
5. No âmbito do fomento à produção audiovisual brasileira, os problemas enfrentados
pela Ancine vêm se acumulando há tempos. Desde a publicação do Acórdão 721, de
março de 2019, através do qual o TCU recomendou a mudança na metodologia de
análise da prestação de contas dos projetos financiados com recursos públicos federais
e que resultou no fim do programa “Ancine + Simples”, os procedimentos internos de
aprovação e acompanhamento de projetos, o que inclui a liberação de recursos, foram
se tornando mais complexos e demorados. A reestruturação organizacional das áreas
de fomento da agência, por sua vez, resultou num novo regimento interno que não
trouxe a agilidade e integração previstas. Ao contrário, a nova estrutura, concebida sem
o necessário planejamento, não tem cumprido seus objetivos, problema agravado pelas
sucessivas trocas de chefia em setores sensíveis das áreas de fomento. Mudanças de
regras a partir da publicação de novas instruções normativas, desacompanhadas de
regras de transição claras para os projetos aprovados sob a vigência de normas
anteriores, têm contribuído ainda mais para a morosidade das análises. Um exemplo
disso é a alteração proposta pela IN 158, publicada no final de 2021, relativa à
composição do plano de financiamento dos projetos. Os rendimentos financeiros
auferidos pelos projetos no intervalo de tempo em que o recurso é captado e finalmente liberado para movimentação a partir de um comando da Ancine, que são obrigatoriamente aplicados na produção e estão submetidos às regras ordinárias de prestação de contas, passaram a ter que integrar o plano de financiamento dos projetos. A medida, discutível no mérito, sobretudo em tempos de inflação alta, foi tomada sem qualquer debate com a classe ou com os servidores. Produtores com projetos ativos na agência e que contavam com esses rendimentos, muitos aliás já calculados e prontos para liberação, ficarão com recursos travados. O resultado disso tem sido, por um lado, a sobrecarga de coordenações submetidas à Superintendência de Fomento da agência, que agora precisarão reanalisar os planos de financiamento de todos os projetos ativos e com recursos captados, procedimento que é condição para que novas liberações de recursos sejam efetivadas; por outro, a insegurança jurídica e o prejuízo das empresas proponentes, que estão tendo sua capacidade de planejamento duramente afetada pelas decisões da Ancine.
6. Considerando que ao longo dos últimos anos a Ancine passou a ser alvo de diversas
denúncias de censura, e que políticas públicas importantes foram canceladas após tais
denúncias, como o Programa de Apoio à Participação Brasileira em Festivais Internacionais, o Programa de Apoio Financeiro aos filmes brasileiros de longa- metragem indicados ao Oscar, os editais bilaterais de coprodução internacional e a divulgação de lançamentos nacionais, solicitamos que seja criada comissão específica para investigar tais denúncias de censura e as razões da descontinuidade das respectivas políticas públicas. Solicitamos ainda que as políticas descontinuadas sejam retomadas, considerando sua importância para o desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira.
7. Diversos outros instrumentos importantes de política audiovisual foram descontinuados
ao longo dos últimos anos, tanto no âmbito do FSA quanto da própria Ancine: não há
mais políticas voltadas ao desenvolvimento de projetos, núcleos criativos, ou parcerias
com TV’s públicas, que foram fundamentais para a regionalização da produção
audiovisual brasileira. A Ancine também deixou de contar com qualquer política
continuada de apoio aos pequenos exibidores, num contexto em que “cinemas de rua”
e cinemas nas pequenas cidades pelo interior do país sofrem uma crise cada vez mais
profunda, com o parque exibidor cada vez mais super-concentrado em shopping centers
das capitais, e com uma diversidade cada vez menor de títulos exibidos, uma vez que
não há qualquer política de incentivo à diversificação ou proteção do cinema nacional.
Solicitamos que a Ancine volta e dialogar com servidores e representantes do setor
audiovisual independente de forma a restabelecer e aperfeiçoar as diversas políticas
públicas que foram descontinuadas.
8. Considerando o baixo desempenho da gestão da Ancine na última avaliação realizada
pelo TCU do Índice Integrado de Governança e Gestão Públicas (IGG), caindo para a
penúltima colocação entre as agências reguladoras, solicitamos que sejam cumpridos
os compromissos assumidos pela Ancine perante o TCU a partir daquela avaliação, por
exemplo: realização de pesquisa de clima organizacional; adoção de programa de
qualidade de vida para todos os servidores; escolha dos membros da alta administração
realizada com base em critérios e procedimentos definidos; tornar públicos os
documentos relacionados a cada contratação, dentre outras boas práticas de gestão, governança e transparência não adotadas atualmente pela agência. Solicitamos ainda que a Ancine cumpra a orientação do TCU de tornar público em sua página o resultado da avaliação do IGG, considerando sua enorme relevância pública.
9. Solicitamos que a Lei 12.627/11 (Lei de Acesso à Informação) e o respectivo Manual de
Aplicação da LAI, da CGU, sejam devidamente cumpridos, pois atualmente a regra nos
processos administrativos da agência é o sigilo. Atualmente a Ancine mantém em sigilo
até mesmo os estudos técnicos que servem de fundamentação às alterações
normativas, como aqueles que fundamentaram as sucessivas flexibilizações da
regulamentação da Lei do SeAc (Lei 12.275/11). Tais estudos deveriam não apenas ter a
classificação de sigilo revogada, por sua relevância deveriam também ser publicados no
OCA, cuja quantidade de estudos técnicos publicados caiu drasticamente nos últimos
anos. A Ancine deixou de divulgar em seu site até mesmo os dados de financiamento do
fomento e do FSA7, desatualizados há mais de dois anos. Analisando os dados do
Relatório Anual de Atividades de 2021 da Ouvidoria-Geral, percebe-se que a Ancine
possui baixas médias de liberação de deferimento de pedidos de acesso à informação,
inferiores às médias do governo federal. O índice de provimento de recursos é ainda
mais baixo. É preocupante a prática reiterada da Diretoria Colegiada de negar
sistematicamente provimento a todos os recursos de pedidos de acesso a informação,
o que na prática inutiliza uma instância recursal que é direito de qualquer cidadão.
10. A ENCCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, que
é a principal rede de articulação de diversos órgãos de controle, como TCU, GCU e MPF,
realizou em 2021 um diagnóstico de todos os órgãos federais, e o resultado sobre o
desempenho da Ancine quanto à aderência às boas práticas de prevenção à fraude e à
corrupção foi extremamente preocupante, classificando a agência no nível mais alto de
“risco de suscetibilidade à corrupção”. Apesar de, desde então, a Ancine ter elaborado
um Plano de Integridade e ter aderido ao Programa Nacional de Prevenção à Corrupção
(PNPC), observamos que a agência não vem cumprindo diversos compromissos
importantes estabelecidos nos planos de ação do Plano de Integridade e do Programa
Nacional de Prevenção à Corrupção10, ou forneceu aos órgãos de controle informações
falsas sobre o suposto cumprimento. Por exemplo, sobre as ações de prevenção à
corrupção, a agência informou que divulga “tema e conteúdo de suas reuniões com
particulares ou sua gravação”, e que “adota processo seletivo para seus cargos com
divulgação de critérios e resultados, inclusive os de direção”, medidas importantes que
na verdade a agência não adota. Quanto às ações voltadas à detecção, investigação,
correção e monitoramento de corrupção, a adesão da Ancine às boas práticas avaliadas
é quase nula, ou o suposto cumprimento informado é meramente formal e não efetivo,
e por vezes falso. O que se observa na prática é que a questão da integridade é ignorada
na agência, ou tratada sob seu aspecto meramente formal. A agência não possui, por
exemplo, nenhum tipo de política ou canais específicos para tratar de assédio moral e
sexual, não informa em nenhum sítio (nem mesmo no Portal do Servidor) a composição
das comissões de integridade (Ética, Correição, etc) nem os critérios de escolha, além
da frequente sobreposição de funções que deveriam ser independentes (o Gerente de
Recursos Humanos, por exemplo, vem sendo reiteradamente reconduzido à Comissão
de Correição, cujos critérios de seleção não são públicos). Diversos planos que deveriam
servir como parâmetros fundamentais para balizar a atuação da agência estão com sua
elaboração tão atrasada que praticamente inviabiliza sua implementação, como o Plano
de Comunicação Institucional de 2022, ainda não aprovado. Outro exemplo desta falta
de atenção à questão da integridade é que, apesar de a Resolução da Diretoria Colegiada
78/201711 ter estabelecido a necessidade de elaboração e aprovação de um Plano de
Gestão de Riscos, até hoje, 5 anos depois, a Ancine ainda não possui nenhum plano.
Outra ação de integridade e transparência que seria bem-vinda seria a publicação, no
portal da Ancine, da relação de empresas das quais os diretores da agência sejam sócios,
bem como de eventuais contratos que estas empresas eventualmente tenham com o
poder público.
11. A gestão da Ancine vem descumprindo reiteradamente não apenas os compromissos
com os órgãos de controle, mas também os próprios compromissos internos: o Plano
de Gestão 202112 foi em grande medida descumprido, e o de 202213 segue o mesmo
caminho. A baixa adesão da Ancine às diversas práticas de boa gestão, governança e
transparência, bem como a total falta de diálogo com os servidores, acabam tendo
consequências não só para a organização interna da agência, mas para os resultados
concretos das políticas audiovisuais, como podemos observar através do Relatório de
Gestão 202114, cujas principais metas de mercado não foram atingidas, ou seus
indicadores foram distorcidos de tal modo a aparentar um cumprimento inexistente.
Assim, reforçamos a urgência dos pedidos para que a agência dialogue com os
servidores, implemente as medidas de boa gestão e transparência com as quais se
comprometeu, e faça a defesa institucional das políticas audiovisuais brasileiras, que
justificam sua existência e atualmente se encontram sob sério risco de continuidade.
Atenciosamente,
Luiz Henrique Silva Souza
Diretor-Presidente da ASPAC