Cena com o ator Cauã Reymond, em
Cena com o ator Cauã Reymond, em "A Viagem de Pedro" - Foto: Fabio Braga

A visitação ao coração de Dom Pedro no Brasil começará neste sábado (27) e permanecerá aberta nos dias 28, 3 e 4 de setembro, no Palácio do Itamaraty, em Brasília. A cineasta Laís Bodanzky tem uma opinião incisiva sobre esse evento: “Temos que questionar essa ideia, na minha opinião, absurda de trazer o coração de Dom Pedro, essa apropriação da história de forma ufanista” diz.

Recebido com tiros de canhão e honras de um chefe de Estado, o coração de Dom Pedro I chegou ao Brasil por intervenção de Jair Bolsonaro (PL). Foi ele quem mobilizou os órgãos oficiais para fazer dessa vinda um marco das comemorações do Bicentenário da Independência. A ideia teria partido da médica Nise Yamaguchi, que frequenta o Palácio da Alvorada desde os tempos que convencia o presidente a adotar o ineficaz tratamento precoce contra a Covid-19 durante a pandemia. Até os herdeiros da família Real portuguesa que moram no Brasil participaram das negociações para a vinda do órgão do imperador. A relíquia é guardada na cidade do Porto, como um pedido expresso do próprio Dom Pedro I e saiu pela primeira vez de Portugal.

Laís Bodanzky preocupa-se não só com o tom ufanista, mas também pelo caráter oficialesco que se tenta imprimir neste Bicentenário da Independência. Por oficialesco, a cineasta lembra que é do interesse de uma minoria que está no poder a construção de imaginários que a favoreça. “A nossa memória, escrita nos livros oficiais, tem o ponto de vista de um herói, que fez a Independência e é cultuado. Mas cultuado por quem?”, questiona. “A história oficial brasileira foi o tempo inteiro escrita dessa forma. Com o interesse de um determinado ponto de vista, normalmente de quem está no poder, de quem tem o poder político e econômico.”

É com essa inquietude que a cineasta Laís Bodanzky lança, na próxima quinta-feira (1º), o filme A Viagem de Pedro, uma devastadora desconstrução da imagem do imperador Dom Pedro I. A obra deveria ter exibições gratuitas e obrigatórias nas escolas brasileiras, mas certamente a censura criaria empecilhos por cenas de sexo (ou a falta dele) no leito imperial. Sob Bolsonaro, o coração de Dom Pedro é algo a ser comemorado, mas no longa de Laís não só esse órgão, mas todo o corpo do imperador mereceria a reprovação por sintetizar um ser que está longe de retratar um herói nacional.

“Esse tal de Dom Pedro é um homem tóxico. Hoje sabemos identificar esse nome, mas naquela época, 200 anos atrás, o que era esperado de um homem era essa estrutura patriarcal, machista e um opressor de gênero e também de raça”, diz a cineasta paulistana, que estudou teatro com Antunes Filho no CPT e se formou em cinema pela Faap. Mérito do ator Cauã Reymond, que convidou Laís e pediu a ela que emprestasse o olhar da mulher para retratar esse personagem histórico. Cauã ficou impactado pelo discurso feminista presente no filme anterior dela, Como Nossos Pais (2017). Para trazer um olhar renovado sobre Dom Pedro, era preciso alguém com coragem de fugir das lições impressas nos livros de “educação moral e cívica”, que tanto caem ao gosto da trupe bolsonarista.

O filme deveria ser lançado há alguns anos, mas veio a pandemia e então a proximidade do Bicentenário da Independência. Ao estrear nas telonas do cinema, a obra de Laís Bodanzky suscita questões que deveriam estragar o caráter festivo da passagem do coração de Dom Pedro entre nós, como pretende Bolsonaro. A cineasta quer questionar as estátuas que celebram personagens como se fossem heróis e nada mais, assim como quem são os narradores da história e como elas vêm sendo registradas. A Viagem de Pedro chega para por em dúvida muitas das certezas que foram sendo empurradas de geração em geração.

Dom Pedro é, aos olhos desse longa, um governante que não consegue aplacar seus dramas existenciais que começam desde os 10 anos, quando é deixado pelo rei Dom João VI para governar o Brasil, então Colônia de Portugal. Cauã empresta ao personagem uma escala emocional que vai do machão da vez até o brocha que recorre ao que tiver na frente para sair dessa situação.

O ano é 1831, quando dom Pedro decide voltar a Portugal, deixando com algum peso na consciência no Brasil seu sucessor, Dom Pedro II. Mas sua saída não foi sem sobressalto, já que pode-se dizer que foi praticamente expulso do País. Ele sabe que irá encontrar em Portugal seu irmão, Dom Miguel (vivido pelo ator português Isac Graça), mas está decidido a recuperar o trono que julga ser seu por direito. Porém está frágil, não só politicamente, mas também fisicamente, acometido por uma sífilis e sendo portador de epilepsia.

Por meio de inúmeras pesquisas históricas, a equipe de produtores (Bianca Villar, Cauã Reymond, Fernando Fraiha, Karen Castanho, Luis Urbano, Luiz Bolognesi, Mario Canivello, Sandro Aguillar) ajudou a diretora, que assina o roteiro, a elaborar uma imagem mais próxima do que foi esse momento crucial na vida do imperador. A Viagem de Pedro se passa a maior parte do tempo na fragata inglesa Warspite, que tem a incumbência de levar Dom Pedro I e Amelia (Victoria Guerra) de volta a Portugal. Mas imagens do passado se intercalam, como fluxos de consciência, quase alucinações, que insistem em perturbar a vida do imperador. Ele tem lembranças de Maria Leopoldina (Luise Heyer), a imperatriz consorte, ou de sua amante, Domitila de Castro (Rita Wainer), que surgem como fantasmas. A culpa está presente o tempo todo.

“Quando você vai fazer um personagem que já existiu, no caso de Dom Pedro, é uma figura muito contraditória e retratada de formas muito diferentes”, diz Cauã, cujo primeiro papel como ator foi interpretar justamente Dom Pedro. Ele estava na 3ª série, não sabia sequer se viria a ser ator, mas tentou imprimir ao então herói o papel de um macho, montado num cavalo de vassoura. “Foi interessante trazer várias camadas de desconstrução desse personagem, falando de masculinidade tóxica, racismo estrutural, a ausência do feminino.”

Ao descontruir, e não referenciar, Dom Pedro, o filme contribui para apresentar também uma outra constituição de Brasil, bastante explorada em outras produções, mas não de forma tão multicultural. O navio Warspite transpira uma babel marítima, onde convivem pessoas que falam diversas línguas, do português ao francês, do inglês ao alemão, e sem falar nos dialetos africanos de negros que já não eram mais escravos, mas continuavam a ser tratados como tal pelos brancos que conduziam a embarcação. Há um clima de constante tensão, marcado por conflitos interraciais e interreligiosos a bordo, que também remetem a atual incompreensão do diverso que persiste na sociedade brasileira.

Licença poética

Cena do filme "A Viagem de Pedro", de Laís Bodanzky
Cena do filme “A Viagem de Pedro”, de Laís Bodanzky – Foto: Divulgação

A diretora e equipe não tiveram acesso ao diário de bordo escrito por Dom Pedro, tampouco havia documentos sobre a viagem em si. Restou a ela ficcionar como teriam sido as reações e os sentimentos que perpassaram Dom Pedro nessa travessia do Atlântico. Laís levou ao filme a cena de um ritual do candomblé que mostra o imperador participando, ao lado de um chef africano do navio (Sérgio Laurentino), em busca de respostas a alguns dos seus dilemas que o atormentavam. Segundo ela, baseado em suas pesquisas, Dom Pedro teria o “ímpeto” de participar de um ritual como esse.

Primeira incursão num filme histórico, Laís conquistou seu primeiro reconhecimento cinematográfico com Bicho de Sete Cabeças (2001), que retratava o drama de um filho internado como doente mental após fumar um cigarro de maconha. A produção lançou o ator Rodrigo Santoro. Durante 15 anos, coordenou o projeto Tela Brasil, que realizou mais de 7 mil sessões de cinema nas periferias brasileiras. Também já foi presidente da SPcine (de 2019 a 2021), empresa de cinema e audiovisual da Cidade de São Paulo. A sua trajetória, produzindo e atuando pelo fomento do cinema brasileiro, é mais do que suficiente para torná-la uma voz dissonante ao descalabro da condução do circo chamado Brasil de Bolsonaro. O coração de Dom Pedro é mais uma prova da desfaçatez deste governo.

“Essa data (o Bicentenário de 7 de Setembro) tem de ser falada, mas não tem de ser festejada, idolatrada. Tem de ser uma data de reflexão, usá-la para olhar para trás e pensar se será que teve mesmo independência e independência para quem?”, questiona Laís Bodanzky. A Viagem de Pedro se encerra com a chegada do imperador a Portugal, num lugar ermo, sem ninguém para recepcioná-lo. A cena é simbólica para um personagem que declarou independência num acerto das elites brasileiras para que a Colônia permanecesse dependente da Metrópole portuguesa. “O Brasil mudou? Teve um projeto de País? Na minha opinião, não.”

Leia ainda “Poema para um coração de passagem“, de Jotabê Medeiros

A Viagem de Pedro. De Laís Bodanzky. Brasil, 2022, 96 mins.

 

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