O genial quadrinista Will Eisner, criador do Spirit e um cronista visual da cidade de Nova York, provavelmente aprovaria os prêmios que os brasileiros Fido Nesti e Mike Deodato receberam em julho, durante a Comic Con, em San Diego, Califórnia. Na noite de 23, os dois artistas tiveram seu trabalho reconhecido na premiação que é chamada de “o Oscar dos quadrinhos” e leva o nome do novaiorquino Eisner desde 1988.
A adaptação de um dos pioneiros da distopia no século 20, 1984 (obra do escritor inglês George Orwell, de 1948), pelo paulistano Nesti para a linguagem do romance gráfico levou na categoria melhor adaptação de outro meio. E Nem Todo Robô, obra ilustrada por Mike Deodato a partir de história de Mark Russell, ganhou o prêmio de melhor série original de humor. Os dois álbuns foram lançados no Brasil – 1984 em 2020 pela Companhia das Letras e Nem Todo Robô em 2021 pela Comix Zone.
Ainda que seus estilos de ilustração sejam completamente diferentes e eles tenham nascido com 12 anos de diferença, a trajetória de ambos os ilustradores tem um traço em comum, que é o fato de terem ter tido que consagrar-se fora do Brasil para que seu trabalho fosse reconhecido… aqui no Brasil mesmo.
O paraibano Mike Deodato, nascido em 1963 em Campina Grande, estreou como fanzineiro ainda no final dos anos 1970. Na década de 1980, passou a publicar charges e cartuns em jornais da Paraíba, até que conseguiu publicar duas histórias de ficção científica na Schwermetalle, versão alemã da famosíssima revista francesa de quadrinhos experimentais Métal Hurlant. Publicando regularmente na Europa nos anos seguintes, acabou chamando a atenção do mercado independente norte-americano e, em seguida, da poderosa indústria de comics, quando desenhou a Mulher-Maravilha de 1994 para a DC Comics.
Na Marvel, Deodato acabou sendo responsável pelo traço dos maiores heróis do selo, como Thor, Hulk e Os Vingadores, antes das muito rentáveis adaptações cinematográficas. Além da graphic novel Elektra. A vitrine dos super-heróis e, claro, o sucesso de Elektra foi o que fez Deodato ser mais conhecido aqui no Brasil. Isso porque, naquele período, a editora Abril vendia gibis em bancas, saindo do circuito mais restrito das livrarias especializadas em quadrinhos.
A vitrine da Marvel, é claro, rendeu muito mais visibilidade e estabilidade, mas também amarrou por quase duas décadas o artista. Em 2019, Deodato saiu da Marvel para se dedicar a projetos mais autorais. Em Nem Todo Robô, vemos o traço ainda com as características da revista clássica do quadrinho de herói, mas mais sujo e anárquico.
O robô Navalhoide é o anti-herói que, na melhor tradição do desencanto tecnológico, conspira o tempo inteiro – ou essa é a impressão que a família para a qual ele trabalha tem. Em páginas de puro humor negro, Deodato antecipa o que podem vir a ser as relações homem-máquina em um futuro próximo. Imagina que ocorra 30 anos à frente, quando os avanços na área de inteligência artificial estarão à disposição de pessoas comuns. A obra tem caçada ágil e divertida, com soluções crescentemente nonsense.
Já o outro artista é o paulistano Fido Nesti. Nascido em 1971, estreou em álbum gráfico ilustrando uma adaptação ambiciosa de Os Lusíadas, o poema épico de Luís de Camões, muitas vezes leitura obrigatória de cursos de literatura de ensino médio e exames de ingresso à universidade. Com traços alongados, que lembram muito os personagens urbanos de Eisner, e desenhos de figura humana precisos, Nesti publicou em revistas dos Estados Unidos como New Yorker, Rolling Stone e Playboy. Aqui no Brasil, sua obra ilustrou Piauí, Cult, Superinteressante e Aventuras na História, além do jornal Folha de S.Paulo.
Foi, no entanto, no mundo das editoras de livros que Nesti pode, de várias maneiras, mostrar o talento, seja em capas ou na produção de livros ilustrados. Em um dos mais notáveis, Ai, Que Preguiça – O Brasil em 39 Poemas Fabulosos e Alegóricos, sobre seleção do estudioso Rodolfo W. Gutilla, as ilustrações do quadrinista dão vida a cenários e personas poéticas de autores como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e José Paulo Paes numa animada viagem pelo Brasil tal como ele foi imaginado – ou desejado desde o descobrimento.
Para a obra que lhe valeu o prêmio Eisner, Nesti acentuou, com mestria, a solidão e a angústia do protagonista Winston Smith, no embate com um Estado autoritário e manipulador que o escritor britânico criou no quase imediato pós-Segunda Guerra – o livro é de 1949.
Apesar da ameaça de vitória do nazifascismo estar temporariamente sepultada com a vitória dos Aliados em 1945, a paz teria ainda, por muitos anos, o travo ameaçador da Guerra Fria. A densidade do texto, ainda que reduzido, acaba por transparecer em cada página do livro, com as alegorias e neologismos que ainda permanecem como metáforas dos riscos envolvidos com a supressão das garantias democráticas.
Ainda que o prêmio seja mérito individual, pode-se afirmar que ele vem num momento em que, apesar dos sucessivos desmontes na área da cultura, a HQ brasileira experimenta uma espécie de boom, em termos de diversidade e variedade.
Bia Abramo é jornalista e pesquisadora de música. Escreve sobre cultura e comunicação digital para a revista Focus. Este texto foi publicado orginalmente na edição 70.