A história por trás da canção: “Ypê” de Belchior floresce em SP

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Ipês plantados pelo sogro do cantor Belchior, Richard, no Brooklin, em São Paulo, e que inspiraram a música "Ypê"

Em 1978, o disco Objeto Direto (WEA), de Belchior, rebocou para o pátio da MPB uma das mais belas peças do cancioneiro belchioriano, a música Ypê. Quem é fã do Bigode não tem a menor hesitação em colocá-la entre suas obras-primas. Esculpida entre dois violões (Rick Ferreira e Palhinha) e o acordeon de Oswaldinho, embalada pelos vocais de apoio barrocos de Eveline, Veronica e Paula, a música vive de um contraponto curioso, uma atmosfera pós-moderna, algo ali entre Castro Alves e Haroldo de Campos, e sua história é muito interessante (e o mais bacana: é uma história que ainda é visitável hoje).

Como assim? Visitável? É isso mesmo. Os ipês que inspiraram Belchior a fazer a música existem. Ficam no Brooklyn Velho, em São Paulo, no comecinho da rua João Álvares Soares, quase esquina com a Tome Portes. Passei por lá ainda hoje. Foram plantados ali há mais de 40 anos pelo sogro do cantor, Richard (mais conhecido como Dick), um britânico típico que adorava cachimbo (hábito que passa adiante), que morava no bairro com a mulher, Margarita (Peggie), e tornou-se um grande amigo do genro de Sobral. Os seis pés de ipê rosa floriram por esses dias, e hoje são longilíneos e impressionantes. Fascinado por sua inserção na paisagem, ali na ladeira final da rua João Álvares Soares, Belchior compôs sua música.

Belchior trabalhou minuciosamente o encarte gráfico do elepê Objeto Direto. Na letra de Ypê, ele burila uma construção espacial, um duplo twist carpado de palavras e significados móveis que o compositor relaciona por meio de setas e atalhos. Por exemplo: o verso “a mente quer ser mas querendo erra” ou “a mente quer ter mas querendo er(r)a”. Esse verso é desmembrado numa estrutura celular, com a ampliação das leituras: “a gente quer ter mas querendo erra”.

“Vêde: o pé do ipê (apenas MENTE) flora/Revolucionariamente/A-penso ao pé da serra”, canta Belchior.

Ali, ele compõe um balé de sílabas tônicas em torno do PÊ, ao mesmo tempo que destrincha o sentido das palavras com o PÊ no meio (a-penso, ou apenso, tanto significando que ele pensa nela quanto está pendurado, suspenso). Não há serra, na verdade; trata-se apenas de uma ladeira. Já o advérbio “revolucionariamente” é grafado como uma árvore deitada, as letras divididas por um sobe e desce interligado.

“Contem-plo o rio que corre parado/E a dançarina de pedra que evolui/Completa-mente sem metas, sentado/não tenho sido, eu sou, não serei, nem fui”.

Imaginei que ali, no verso de abertura, uma lindeza da poesia de Belchior, algo pode ter relação também com a geografia de São Paulo. “O rio que corre parado”, para além da mística da filosofia de Heráclito, certamente pode ser também o pastoso Rio Pinheiros, a algumas centenas de metros dali. E seria muito absurdo pensar na imagem da dançarina de pedra como uma referência à maravilha de Degas, no Masp, a Bailarina de 14 Anos? Belchior certamente conhecia a escultura.

O disco Objeto Direto contém outras obras-primas, como Aguapé, com canto gregoriano, sample de Castro Alves e participações de Fagner e Fausto Nilo. Ou Nada como Viver, de Belchior e Fausto Nilo. Ou ainda a primeira gravação de Mucuripe pelo bardo de Sobral, com o piano acústico de PC Wilcox. Mas a força de Ypê é de subversão do espaço-corpo-tempo e de algum modo de dizer não. Beleza pura.

Belchior em Itabira, em 2002, em visita ao Memorial Carlos Drummond de Andrade (Imagem: Belchior Acervo)

Aqui, uma versão bacanérrima da canção:

 

 

 

 

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