Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira, centra seu canhão de luz no intervalo 1982-1984, anos de pânico pelo advento de uma enfermidade fatal cujo nome, naquele começo, os terráqueos tinham medo até mesmo de pronunciar. Não à toa, a palavra “aids” só é pronunciada duas vezes no filme, já perto do final, quando não é mais possível ao protagonista Suzano (Johnny Massaro) fingir que o HIV não existe, não contamina seu corpo e não mata. O não-pronunciado é o núcleo do filme, que aborda a vida de algumas das primeiras vítimas do vírus a partir do estado do Espírito Santo, no Brasil.
Suzano mora em Paris com o marido francês, mas volta para rever a irmã Maura (Clara Choveaux) e o sobrinho adolescente Muriel (Alex Bonini). À beira do abismo diante de uma doença desconhecida, desesperadora e incitadora de preconceitos vários, ele acaba formando uma segunda família, transitória, com a transexual Rose (Renata Carvalho, da rumorosa peça O Evangelho Segundo Jesus) e o amigo gay Humberto (Vitor Camilo), também portadores-cobaias do HIV. Ao peso da ausência de palavras que nomeiem a coisa, somam-se os pesos do segredo, do degredo, do medo de morrer, da morte em si.
A tentativa otimista dos anos iniciais da década de 1980 reluz na boate Genet, nos sons alegres (ou quase) de “Seja o Meu Céu” (1981), com Robertinho de Recife, e “Nossa Linda Juventude” (192), com o grupo 14 Bis, nos namoros enrustidos que procuram a luz do dia antes da tempestade. Inescapável, o desespero explode, ou implode, nas malhas de “Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)” (1983), com Gonzaguinha, e “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer” (1978), com Fernando Mendes.
Tratando de homofobia num tempo histórico em que a palavra nem era conhecida, Os Primeiros Soldados foi feito antes da pandemia de coronavírus e ganha os cinemas só agora, quando os terráqueos já abandonam as máscaras que por mais de dois anos os protegeram do mais novo surto de pânico, desamparo e suicídio. O fato de estrear num novo período pós-pandêmico aumenta sua atualidade e seu poder de choque. A ceta altura, Rose discursa sobre a enfermidade que “só mata puta, viado e drogado” e chega rapidamente à conclusão de que não há nada de novo sob o sol: “Tentam nos matar desde que o mundo é mundo”.
Mas algo de novo até há, porque o coronavírus não se transmite (apenas) por via sexual. Por isso e por mais motivos, a epidemia de covid-19 tem sido tratada de modo completamente distinto do das trevas da epidemia de 40 anos atrás. Suas vacinas, por exemplo, chegaram aos braços dos terráqueos (pelo menos) 40 anos mais rápido que as do HIV, e isso parece a coisa mais natural do mundo para quem não sofreu os impactos letais da síndrome de imunodeficiência adquirida pelo sexo, pelas drogas, pelo rock’n’roll.
Essas módicas diferenças são suficientes para demonstrar que a homofobia (transfobia etc.) que Rodrigo de Oliveira denuncia ao voltar a 1982 é exatamente a mesma de 2022, desta vez protegida por vírus e por homens orgulhosos do direito de se comportarem como monstros. Fobias à parte, os primeiros soldados contra o HIV são os primeiros soldados contra o coronavírus, em guerra não na Ucrânia, mas aqui, ali e em qualquer lugar, contra o preconceito, o estigma e o extermínio em massa. Os “Soldados” (1985) da Legião Urbana do pioneiro-cobaia Renato Russo ficam apenas implícitos, mas os Secos & Molhados de Ney Matogrosso cantam “Fala” (1973) ao final de Os Primeiros Soldados, numa reafirmação de que “daqui a pouco vêm outros iguais à gente”, como diz Rose, e de que não há força ou vírus capaz de calar e deter o desejo humano por liberdade.
Os Primeiros Soldados. De Rodrigo de Oliveira. Brasil, 2022, 107 min.