No cérebro eletrônico de 40 mil itens de Gil, há um disco inédito

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A executiva norte-americana Valeria Gasparotti, Program Manager do Google Arts & Culture, e o cantor e compositor baiano Gilberto Gil durante coletiva na manhã de quarta, 14 de junho

Nunca foi tão fácil juntar um grupo de tietes de Connecticut.

Desde o meio-dia de hoje, está aberto na internet aquilo que o Google considera a primeira mostra digital do mundo com a totalidade do acervo de um artista, o brasileiro Gilberto Gil, com cerca de 40 mil itens da coleção pessoal do artista (além de mais de 900 vídeos, arquivos de áudio, fotografias digitalizadas, documentos e memorabilia em geral – e até lições escolares). O valor do acordo entre Gil e o Google não foi revelado, mas o artista disse que a abrangência da cessão pode incluir eventualmente até o que ele produzir no futuro – Gil completa 80 anos no próximo dia 26 e celebra esse dia abrindo sua nova turnê europeia, na Alemanha.

A joia da coroa do projeto é um disco inédito de Gil gravado em 1982 no estúdio Rosebud Recording, na Broadway, em Nova York. Durante o inventário dos arquivos para o Google Arts & Culture, foi localizada em 2020 a fita cassete com o registro das gravações, segundo informou Flora Gil, mulher e empresária do artista. A ideia de gravar um disco no Exterior no início dos anos 1980 foi de André Midani (1932-2019), então executivo da Warner.

Uma das preciosidades inéditas do disco é a versão em inglês do clássico “Deixar Você”, que virou “When the Wind Blows”. Outra canção, “Estrela”, que só seria gravada no disco Quanta, de 1997, era a única cantada em português no álbum americano, com o título traduzido de “Star”. Outro clássico gilgilbertiano, “Lua e Estrela” (“Moon and Star Girl”), de Vinícius Cantuária, está no disco. E “Jump for Joy”, a despeito do baixo funky poderoso (lembra mais um hit de Rick Astley do que uma canção de Gil), foi gravada em dueto com Roberta Flack, que também faz vocais de apoio em outras faixas. Jump for Joy foi considerado como o provável título que se daria ao disco inédito caso este tivesse sido lançado – é o nome de uma composição e de um musical de Duke Ellington, de 1941.

Na época, o próprio Gil, por considerar o disco insatisfatório, cancelou o lançamento (a impressão que ele teve do disco naquela época parece se manter firme ainda hoje, embora abrandada por sua maturidade). Finalmente, a máster do álbum se perdeu naqueles inícios dos anos 1980. Mas uma fita com uma das mixagens foi reencontrada pelo pesquisador Ricardo Schott –  estava na sede da Gege Produções, empresa de Gil no Rio.

“Lembro de ter achado que faltavam coisas e sobravam coisas naquele disco. Talvez tenha me incomodado a maneira de produzir muito pragmática. Acho que faltou brasilidade. Senti falta de músicos brasileiros, apesar da excelência dos que participaram… Todos eles tinham experiência em estúdio, de gravações com artistas de variados gêneros musicais. Talvez até por isso eu senti falta de uma certa personalização maior na fabricação do disco”, revelou Gil em entrevista realizada em 2021 pela escritora e jornalista Chris Fuscaldo, que trabalhou na produção do material.

“É uma espécie de museu”, definiu Gil sobre o acervo que foi aberto ao público na plataforma tecnológica Google Arts & Culture, durante concorrida entrevista coletiva na manhã desta quarta-feira, 14, em São Paulo. Após dizer isso, o cantor baiano foi inquirido diversas vezes sobre o significado da palavra “museu” para um notório vanguardista, um dos pais da tropicália.

A tracklist do disco é a seguinte: “You Need Love”, “Jump for Joy”, “Estrela (Star)”, “Fill Up the Night with Music”, “Come On Back Tomorrow”, “Somebody Like Me”, “Moon and Star Girl (Lua e Estrela)”, “When the Wind Blows (Deixar Você)” e “Take a Holiday”.

Ouça o álbum inédito aqui.

 

LEIA ABAIXO A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA COLETIVA DE GILBERTO GIL NA MANHÃ DESTA TERCA-FEIRA EM SÃO PAULO, NA ZONA OESTE, ORGANIZADA EM TÓPICOS:

 

40 ANOS DEPOIS

Em 82, dentro do conjunto geral de providências tomadas pelo artista, eu, e a gravadora, era o grupo Warner na ocasião, decidimos que faríamos um disco nos Estados Unidos. O Ralph McDonald, um grande percussionista, produtor, grande músico, com relacionamento muito grande na área da música negra dos Estados Unidos, se encarregou de fazer o trabalho. Nós fomos para Nova York, ficamos lá pelo menos uns dois meses, quase três meses. Enfim, foram convocados vários músicos: o Steve Gadd (baterista), o Marcus Miller (baixista), Richard Tee (pianista), enfim, muitos outros que vieram produzir um trabalho musical. O Ralph McDonald também chamou alguns colaboradores dele para produzir versões de canções minhas já gravadas aqui, já existentes em português. Fizemos algumas versões. Outras canções inéditas também foram trazidas para a mesa. Acabamos gravando um disco, se não me engano, 12 canções, entre as regravações e as inéditas, e, por alguma razão, o disco acabou não sendo lançado. Foi-se protelando, havia algumas observações que eu fazia em relação a possíveis melhorias na arte-finalização do disco, e acabamos não lançando o disco naquela ocasião. O tempo foi passando, o tempo foi passando, e o disco acabou perdido, porque o ramo do branch da Warner que se encarregava de… um dos selos da Warner que se encarregava de lançar o disco acabou também desfazendo o contrato comigo, e o disco acabou perdido. Só agora, muito recentemente, através de pesquisas exaustivas que a gente fez, e outras pessoas também, foram várias pessoas envolvidas no resgate desse trabalho, desse disco, e acabou o disco voltou. A oportunidade fez com que o disco acabasse migrando para essa coleção do Google que estamos lançando aqui hoje, e essa é a história do disco que está aí, eu ainda com a vozinha bem jovem, fresquinha, de quantos anos atrás? 1982, 40 anos atrás. É o resgate desse sentido precioso, é uma, é uma… 40 anos não são quatro dias, não é (risos)?

PEDRINHAS ARQUEOLÓGICAS

Sobre o disco, eu não mexi. Ele veio, do jeito que ele veio. Porque na verdade o resgate foi feito através de uma fita cassete que foi encontrada em algum lugar com uma mixagem que provavelmente não tinha sido a definitiva, mas que é a única que resultou, é a única que sobrou. E não havia como mexer, porque ali estava tudo reduzido a dois canais numa fita cassete. Mas como eram 40 anos, e o produto, resultado musical de um trabalho que tinha sido feito com gosto, com dedicação etc., mas já há 40 anos, isso foi o que restou e foi isso que a coleção resolveu acolher, e é esse trabalho que está na coleção do jeito que ele foi achado. Na verdade, foi um trabalho de arqueologia artistico-musical que foi feito e é essa pedrinha, digamos assim, do jeito que estava lá, bruta, que veio para a coleção. Aliás, eu até prezo que tenha sido assim porque isso traz mais curiosidade em relação ao trabalho. Se a gente tivesse encontrado uma multitrack, uma fita com várias canais, que pudessem ser reprocessados etc. etc. etc., ficaria uma coisa, ficaria mais um produto com uma recomposição industrial etc. etc. etc. Assim não, assim ficou um pouco como a descoberta de uma coisinha que estava lá, nos escombros… Ficou um trabalho com um caráter mais arqueológico mesmo, digamos assim. Que eu acho que dá o sabor; sua presença na coleção dá um sabor maior do que se fosse um produto industrial com arte-finalização mais específica. Ali não, ali está a pedrinha que foi encontrada, que veio fazer parte da coleção.

MUSEU DE GRANDES NOVIDADES

A era eletrônica, a era digital, está propiciando essa renovação também da dimensão museal, museológica. Nós estávamos há pouco falando ali de dois museus importantes que surgiram exatamente do mundo digital, interessantíssimos, que são a Casa de Jorge Amado, em Salvador, e o Museu da Música, também em Salvador. Ambos trabalhos do Gringo Cardia, com curadoria do Gringo Cardia, no sentido de trazer esse mundo digital, com todas as suas possibilidades, do ponto de vista da imagem, do ponto de vista do som, dessa possibilidade de ir pegando as pepitas, as pedrinhas, e juntando nos museus atuais, eletrônicos, digitais. Tenho a impressão que essa coleção de Gilberto Gil faz parte desse conjunto de novas possibilidades digitais, museológicas. É isso. Fico satisfeito que o meu trabalho também possa dar essa contribuição.

REPROGRAMAÇÃO

Continuação, recomeço, retomada. (Trata-se da) confecção de um material que, de uma certa forma, tem estado, como falei, na dimensão dos sonhos, na dimensão onírica do meu trabalho. O meu trabalho vem falando disso, dessa transformação tecnológica importante que vem se dando no mundo desde, pelo menos, a partir da Segunda Guerra Mundial, com a chegada desse mundo da eletrônica, do cyberespaço, todas essas questões. Então, na verdade, é isto: é um final de estágio, essa coleção junta um bocado de coisa e, nesse sentido, finaliza um período longo da minha vida, pelo menos 50, 60 anos de contribuição desse trabalho artístico. Na verdade, recicla tudo isso, e relança tudo isso num outro plano de possibilidade de uso, de usufruto. Uma coleção com 40 mil itens, fotografias, gravações, documentos pessoais possibilita a todo mundo que está aí um acesso novo e uma possibilidade de utilização de reprogramação desses trabalhos todos. É uma dimensão de novo compartilhamento da minha obra que essa coleção propicia.

O INÍCIO DE TUDO

As coisas da infância, por exemplo, da adolescência. Com o envolvimento mais direto dos membros importantes da família, pai, mãe, amigos próximos, colegas de colégio, o tempo da pré-juventude, da infância mesmo. Isso me toca, como não poderia deixar de ser, de uma forma especial. Depois, tudo que percorreu já da minha presença como artista… Enfim, como homem público, todas essas coisas também têm importância. Mas, do ponto de vista afetivo, me tocam de uma forma diferente das coisas da minha própria origem, do começo, que têm um valor afetivo que eu reputo especial para mim mesmo. E acho natural que todos considerem assim. Porque depois que me tornei uma figura pública, toda a documentação, todo o registro, tudo que apareceu em torno de mim são coisas que já estão na dimensão do homem conhecido, do homem em processo de realização da sua obra. Pertencem a um plano decantado da obra. Enquanto que essas coisas mais iniciais da vida são mais curiosas, tanto para mim quanto para o público que vai acessar essa coleção. Tenho a impressão que agora tudo que disser respeito a produção, realização, a partir do meu trabalho, vai entrar na coleção, porque é um museu aberto. Enquanto vivo eu for, faremos coisas que vão necessariamente entrar na coleção, porque é um museu, é um arquivo. As camadas irão naturalmente se sobrepondo, tudo que eu for fazendo vai naturalmente entrando nessa coleção. Espero que seja assim. Mesmo que meus trabalhos futuros tiverem outras destinações, outras possibilidades, como arquivo, coleção, documentação de um conjunto amplo, tudo que eu fizer tem que, basicamente, entrar. Eu espero que seja assim, que não haja impedimentos.

ACESSO IRRESTRITO

Como a coleção abrange todo o registro do que foi feito das minhas músicas, as minhas falas, as minhas imagens, essa dimensão sonora, musical, natural, eu prezo muito que haja condições tecnológicas hoje de juntar tudo isso de uma forma rápida, leve, de acessibilidade ilimitada. Eu fico lembrando que os primeiros cuidados de manutenção da memória, através de uma coleção própria que foi sendo feito na minha própria empresa, unidade artística, eram coisas imensas: montes e montes de páginas de jornais e revistas, que ocupavam um espaço enorme, que requeriam cuidados especiais de manutenção, conservação. Agora, você tem a oportunidade de passar diretamente do registro que é feito para o uso que é feito pelos meninos com seus celulares. A dimensão eletrônica, cibernética, dá essa possibilidade da coisa imediatamente acessível, utilizável, significada, significável.  Tem uma realização no campo virtual que dispensa tudo isso, velhos espaços, velhos cuidados de manutenção. Vai diretamente do lugar que abriga a coleção, do espaço eletrônico, para as várias pontas, vários aparelhos, computadores, telefones, celulares etc. que as pessoas têm por aí pelo mundo. Um arquivo que estava ali guardado no Rio de Janeiro, com acesso restrito a poucas pessoas, agora vai diretamente para o mundo inteiro, para o Japão, para a Indonésia, para qualquer lugar da África. As pessoas agora têm acesso a tudo, a toda a obra. Acho que é esse é o comentário que eu faria do ponto de vista de uma ressignificação do trabalho dessa nova dimensão museal à qual eu me referia aqui.

DOCES BÁRBAROS

Essa possibilidade dos reencontros, das reuniões presenciais através de projetos novos, shows, discos, uma nova junção de dois ou três, como o último, que juntou Gil e Caetano, tive um trabalho com Gal também recentemente, é possível, sim. Que a gente se reúna de novo, os quatro Doces Bárbaros. Tomara que aconteça. Bethânia sei que tem mantido interesse nisso, tem manifestado o desejo de que nos reunamos de novo. Tomara que aconteça.

WHATSAPP

Eu às vezes comento com Flora e com as pessoas que trabalham comigo sobre essa condição de “hospedaria”, de hospedagem que os novos aplicativos proporcionam. Um dia desses, a Flora conversando com uma produtora, uma dessas meninas que trabalham, produzem coisas, sobre o Whatsapp, e essa menina respondia para ela: “Não se incomode, não, porque eu moro no Whatsapp”. Então, essa condição de hospedaria que essas “casinhas” eletrônicas propiciam são desses lugares interessantíssimos e que a gente pode utilizar de maneira mais intensiva. Ou não. Eu não penso muito na possibilidade de que eu venha a estabelecer residências fixas nesses lugares, com a obrigação de manutenção da casa, de ter todo dia o café da manhã, o almoço e o jantar nesses aplicativos todos, espero que não seja necessário me envolver em tal dimensão de compromisso com esses lugares, mas, na medida do possível, vou continuar contribuindo. Mas é o que eu disse aqui: uma coleção como essa, um museu como esse, já é o lugar onde naturalmente o que a gente vai fazendo, produzindo, vai acabar se encaminhando para esses lugares. Mesmo que eu não queira viver nessas casas, a minha vida de criador, de produtor, vai estar necessariamente preenchendo o dia a dia dessas casinhas todas.

ANITTAS

Da mesma maneira que os novos talentos, os meninos e as meninas que estão chegando hoje continuam se referindo aos discos, ao material todo a que eles puderam ter acesso, e que os ajudaram na produção e desenvolvimento do talento, eu acho que essas novas ferramentas eletrônicas potencializam ainda muito mais esses meninos e essas meninas todas. Todos e todas e todes. Estávamos comentando há uma meia hora o trabalho que a Anitta teve no sentido de utilização de todo esse aparato tecnológico e eletrônico para desenvolver uma linguagem, um trabalho, um perfil de atuação dela, de estabelecer a concretização de um modo artístico de ser, que finalmente ela conseguiu. Isso está aberto para todas as Anittas, todos os meninos, todas as meninas do mundo hoje. A quantidade de artistas orientais hoje, do Japão, da Coreia, grupos que fazem sucesso no mundo inteiro a partir do mundo eletrônico. E no Brasil também, todos os lugares. Espero que essas ferramentas todas continuem a ser usadas de forma cada vez mais aperfeiçoada, aprofundada, por todos os meninos com pretensões, com presunções, com desejo de se tornarem criadores importantes, acessáveis no mundo inteiro. Eu espero que seja assim. Eu acredito que os benefícios continuarão a surgir dessas coisas todas, que as novas possibilidades técnicas nos deram. Espero sinceramente que muita gente nova apareça, muito potencial novo que era virtual acabe se manifestando em realidade de fato. Acredito nos meninos, nos filhos, nos netos. Estão aí, e essa grande família minha, ampliada, está aí. Eu pertenço a esse mundo, sou um dos mentores dessa grande família artístico-cultural nacional, mundial etc. Sempre foi o meu desejo, sempre foi a minha ambição, é isso que eu quero que aconteça.

 

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