Cecília é aquela profissional distante, protocolar e calculista. Como pediatra, ela é uma ótima burocrata. Todas as suas condutas médicas passam pelo tratamento padronizado de longos anos de carreira, vinculados ao histórico familiar de atuação médica.
Enquanto ela detesta lidar com responsáveis preocupados e, nas suas consultas, corta cirurgicamente as relações médico-paciente que podem se estender por mais de alguns retornos, seu pai é o oposto. Um endocrinologista pediátrico zeloso que assiste e ampara crianças diabéticas e suas mães aflitas – chamadas maldosamente por Cecília de mãe-pâncreas, pois ao cuidarem da doença crônica de seus filhos, fazem as vezes do órgão debilitado. É em A Pediatra, lançado pela Companhia das Letras em outubro, que Andréa Del Fuego criou espaço para os pensamentos cáusticos de Cecília.
Narrativa construída em primeira pessoa, nos deparamos com a crueza da mente da protagonista, que leva todas as suas relações a uma distância que a mantém com poder, mas evidenciam sua fragilidade. No começo da narrativa somos apresentados a uma relação matrimonial lânguida, arrefecida pelo estado de depressão profunda do marido. No desenrolar das páginas, com a separação encaminhada, a existência deste ex-cônjuge se torna memória e outros personagens do cotidiano de Cecília se revezam de acordo com seus interesses e desejos não ditos.
A ótica da protagonista prisma todos por uma perspectiva cínica e afiada. O único personagem que é menos atingido pela acidez de Cecília é o seu pai, por quem ela nutre certa admiração. Mas nas outras relações cotidianas seu pensamento se mantém mordaz. A começar por Celso, um homem casado, com quem se envolve sexualmente. Em paralelo, no convívio com Cecília, temos Deise, a empregada doméstica que mora na casa da patroa e escancara como as relações de trabalho próximas se adensam em pactos turvos que misturam o pessoal, o rotineiro e as relações de poder. Outras questões pungentes sobre as relações de trabalho ficam evidentes quando a protagonista se vê ameaçada no seu exercício médico, por um outro pediatra que tem uma abordagem mais humanizada e respeitosa aos desejos maternos.
Todas as relações são permeadas por algum tipo de hostilidade da protagonista. Os personagens se somam em uma série de desavenças que escancaram o pouco interesse que Cecília tem por tudo e todos. Até que, como amante de Celso, ela passa a orbitar em um universo familiar que não a inclui diretamente e, por essa relação, começa a ter acesso aos sentimentos e vontades que escondia dela mesma, levando a uma obsessão que envolve a todos: da esposa à babá e, principalmente, de Bruninho – primogênito da família, cujo nascimento Cecília esteve no papel duplo de neonatologista e amante do pai do recém-nascido.
No curto romance, a autora Andréa Del Fuego escancara de forma envolvente e interessante aquilo de mais desconfortável que não queremos que exista: nem nos outros, nem em nós. A protagonista não olha para suas feridas e para suas vontades e segue até que surta. Mas quantos de nós mantemos a língua afiada para nos protegermos dos nossos próprios desejos não ditos? Livro curto e magnético que pela crueza de Cecília aponta questões sérias da nossa sociedade que se perpetuam há décadas, sejam nas relações amorosas, sexuais ou de trabalho.
* Resenha produzida para o Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc-USP)