“Chego aos 80. A forma geral do show se deve também ao prazer da volta quase-pós pandêmica aos palcos e a atenção à minha história nessa arte tão amada e bem cultivada pelos brasileiros – mesmo que minhas reservas quanto a meu talento para ela não tenham se desfeito”.
O trecho acima foi pinçado do texto que Caetano Veloso escreveu para a estreia brasileira do show Meu Coco, esta noite, em Belo Horizonte (MG). O cantor baiano completa 80 anos no dia 7 de agosto e já excursionou com o show Meu Coco pela Europa, mas no Brasil é a estreia.
Meu Coco, baseado no novo disco do compositor e cantor, tem sua première hoje, às 21 horas, no Grande Teatro do Palácio das Artes ((Av. Afonso Pena, 1.537), e terá mais dois shows; amanhã, também às 21 horas, e domingo, às 20 horas, no mesmo local. As duas primeiras datas estão esgotadas (o teatro tem capacidade para 1,6 mil pessoas). Os últimos ingressos para a última sessão extra do show de Caetano Veloso custam 160 reais estão disponíveis no site eventim ou na bilheteria do Teatro do Palácio das Artes.
LEIA ABAIXO NA ÍNTEGRA O TEXTO DE CAETANO PARA A APRESENTAÇÃO DO SHOW:
Fazer show como parte da divulgação de um Lp novo é um hábito velho, do tempo dos discos físicos. O show Meu Coco, que começa turnê nacional em BH, refere-se a esse costume. Mas não é a mesma coisa. Dos que fiz ao longo da carreira, Prenda Minha foi o mais radical em não conter uma só canção do álbum Livro – e ele saiu do show Livro Vivo, que mantinha muito do repertório do disco. Acho que só Arnaldo Antunes faz shows com o mesmo setlist do disco correspondente. No show Meu Coco procuro juntar peças marcantes do álbum com obras que registrem momentos históricos do meu trabalho. Mas com o caráter de roteiro quase cinematográfico que nunca me abandona quando projeto um espetáculo. Penso na sequência de canções como quem está diante de uma moviola – ou de um aplicativo de “edição”, que é como se chama hoje a montagem. Tenho alma de cineasta, embora não tenha vocação física para a vida de um. Assim, a distribuição de canções novas e canções conhecidas não tem a mera função de agradar aos espectadores que queiram ouvir ao vivo o que aprenderam no novo álbum e aos que busquem reouvir coisas minhas já consagradas. O critério vai muito além disso. A presença de algo antigo mas quase desconhecido – como a de umas e não outras faixas do disco Meu Coco – ilumina o que quer dizer a eventual aproximação de um surrado sucesso óbvio com uma igualmente obvia canção marcante do álbum novo.
O fato de ter comigo, no estúdio de ensaio e no palco, músicos extraordinariamente dotados me deslumbra e intimida. De Lucas Nunes, um dos prodígios da Dônica e do Bala Desejo, que produziu o álbum Meu Coco comigo, a Kainã do Jeje; de Pretinho da Serrinha a Rodrigo Tavares; de Alberto Continentino a Tiaguinho (também) da Serrinha – é todo um grupo de supermúsicos. Lucas e Pretinho pré-planejaram comigo como andariam os arranjos e eu passei quase todo o tempo dos ensaios seguindo as sugestões que vinham deles. Devo confessar que me sinto deslumbrado e intimidado pela musicalidade deles.
Visualmente, o espetáculo ganhou um presente quase mágico. Hélio Eichbauer, que vinha fazendo os cenários de meus shows desde O Estrangeiro, deixou, antes de morrer repentinamente, um esboço cenográfico que, depois de me ser mostrado por Dedé, que foi minha primeira mulher e viveu casada com Hélio por décadas, foi adaptado por Luiz Henrique, que fora assistente do grande cenógrafo. A adequação das linhas de Joseph Albers aos nossos sons nos diz que Hélio está vivo ali. O show é, desse modo, uma homenagem à sua memória.
A luz que revela as muitas possibilidades dessas formas longevas da Bauhaus foi planejada, sob minha mirada, por Fernando Young e Gabriel Farinon (e é operada por este último).
O desafio de equilibrar os sons de uma exuberante percussão com nossos gestos harmônicos e melódicos (além de poéticos) é enfrentado por Vavá Furquim (que, desde um encontro casual em Nova York nos anos 1980, tem sido o responsável pelo PA de todos os meus shows) e Igor Leite, que controla os in-ears e todo o som que os que tocamos ouvimos no palco.
Chego aos 80. A forma geral do show se deve também ao prazer da volta quase-pós-pandêmica aos palcos e a atenção à minha história nessa arte tão amada e bem cultivada pelos brasileiros – mesmo que minhas reservas quanto a meu talento para ela não tenham se desfeito.
Caetano Veloso