O meio de caminho de Beni Borja

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Beni Borja - foto Rodrigo Leme
Beni Borja - foto Rodrigo Leme

“Mergulho” é a canção mais triste do álbum No Meio do Caminho, do músico, compositor e produtor musical carioca Beni Borja, com um refrão que diz muito sobre o artista e muito do que há para dizer sobre ele e seu trabalho: “O que podia ter sido/ assombra noites e dias/ mergulho na corrente/ sinto a água fria/ choque entre o que é/ e o que eu queria/ abro bem os olhos/ respiro fundo/ o sol um dia vai brilhar/ nesse meu quarto escuro”.

Anônimo para o público em geral, Beni foi fundador e baterista da banda pop oitentista Kid Abelha (à época chamada Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens) e é um dos autores do hit “Fixação“, além de outras composições da fase inicial do grupo, como “Distração” e “Vida de Cão É Chato pra Cachorro”, ambas de 1982. Cumprindo um item básico da mitologia do rock, foi o integrante que saiu da banda cinco minutos antes do sucesso e do lançamento do álbum de estreia – Seu Espião (1984) contém o legado de Beni para o Kid Abelha, nas faixas “Fixação”, “Hoje Eu Não Vou” e “Homem com uma Missão”, as duas primeiras assinadas com Leoni Paula Toller e a última, só com Leoni, que também deixaria o Kid, em 1986.

De certa forma, Beni revalidou a mitologia em 23 de dezembro de 2021, quando morreu de infarto, aos 60 anos, retirando-se de cena antes do lançamento daquele que seria seu único álbum solo. “Mergulho”, uma canção de desistência, torna-se especialmente forte e triste diante dos acontecimentos: “Se entregar ao fácil/ se entregar ao álcool/ se entregar ao desânimo/ entregar os pontos e fugir da luta/ se render ao medo, se render ao ócio/ se render ao pânico/ render-se ao conforto de olhar da plateia”.

Pós-Kid Abelha, Beni teve trajetória extensa no lado de dentro da indústria musical. Sob o nome Carlos Beni, produziu o LP de estreia do popíssimo Biquini Cavadão (Cidades em Torrente, de 1986, com o hit “Tédio”) e todos os discos do grupo até 1998. Compôs com Leoni no início da fase solo do artista (“Carro e Grana”, “A Festa” e “Círculos”, gravadas em Leoni, de 1993), acompanhando a levada de incertezas do parceiro após o final do grupo Heróis da Resistência: “Todo mundo ria de tudo que eu dizia e eu dizia um monte de bobagens/ eu achava que eu tinha de tudo para sempre, que eu tinha amigos de verdade/ mas a verdade sempre vem bater à porta a gente tenha ou não vontade/ já tive carro e grana e um monte de convites pra qualquer lugar/ hoje eu só ando a pé, mas eu continuo a andar”.

Na beirada do século 21, co-assinou a produção do primeiro disco do grupo Farofa Carioca, Moro no Brasil (1998), que lançou Seu Jorge e o clássico “A Carne” (de Seu Jorge com Marcelo Yuka, então n’O Rappa). Em 2004, Beni criou e dirigiu o efêmero selo independente Psicotrônica, que lançou Novo Mundo, dos Picassos Falsos, e Atemporal, de Cris Braun. Em 2014, assinou com Paula Toller e Liminha o reggae emblemático “À Deriva pela Vida”, gravado por Paula: “Nos perdemos no caminho/ onde mora a solidão/ as marés desse destino/ nos carregam sem cessar/ e as correntes que nos trazem/ vão um dia nos levar”.

Tristezas à parte, o tom depressivo de “Mergulho” é matizado nas outras nove canções de No Meio do Caminho. O álbum solitário, que sai agora postumamente, deixa para a história um cantor à vontade, uma prumada pop em linha paralela às dos parceiros Leoni e Paula, melodias sedosas, uma produção vibrante, pitadas de bom/mau humor contra nossa desumanização (“Cacarecos”: “Coleciono cacarecos/ ferro velho eletrônico/ relíquias, celulares/ televisões sem controle/ despejos dos meus desejos”, “eu acumulo trambolhos/ meu lixo existencial/ são testemunhas caladas/ de uma vida dirigida/ pelo impulso irracional”), blues amargos (“Estrela do Norte”, sobre a legião de brasileiros que levam vidas erráticas no mundo dito rico, “700 dólares por semana/ passeando cachorros no Central Park/ em bando chegam das Minas Gerais/ pra um salário bom e um emprego ruim/ lavando pratos em Estocolmo/ fazendo bicos em Berlim”, “fazendo entregas em Miami/ dirigindo táxi em Paris”, até o refrão-conclusão: “Eu vivo dentro de um filme/ falado em língua estrangeira/ cruzei o oceano/ pra me olhar no espelho”), um rock-manifesto (“Sentido do Verbo Ser”: “Não tenho/ não quero ter/ eu sou”).

O protesto sarcástico aos modos de Raul Seixas tem lugar em algumas das melhores faixas, como “Entre na Fila” (“Entre na fila, espere a sua vez”, “mantenha sempre o seu lugar marcado”) e “Tanto Bandido”, que explicita tonalidades deixadas subentendidas por Raul: “Na Vieira Souto tem tanto bandido quanto na Rocinha/ no Capão Redondo tem tanto ladrão quanto nos Jardins (…)/ esse rouba pra provar que é macho/ outro rouba pra dizer que é esperto/ eles roubam porque acham certo/ todos roubam porque acham bom”.

Os alicerces do pop e da indústria musical são cheios de histórias parecidas com a de Beni, mas poucos são os que se dispõem a deixar documentada a vida como ela foi e é, um mérito extra de No Meio do Caminho. Como ele estaria cantando se aqui permanecesse, são pequenas cápsulas do que poderia ter sido, mas não foi.

"No Meio do Caminho" (2022), de Beni Borja

No Meio do Caminho. De Beni Borja. Independente. Nas plataformas digitais.

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