O olindense Chinaina era China e era vocalista do Sheik Tosado, banda de frevo-punk-maracatu-hardcore da segunda dentição do movimento mangueBit.
Carnaval era a maior festa popular de um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, mas que, governado por milicianos, cuja irresponsabilidade levou a gestão da pandemia a níveis trágicos, com uma pilha de vítimas superior a 625 mil cadáveres e a absoluta incerteza sobre seu fim, tornou-se um cemitério de proporções continentais.
Era é modo de dizer, afinal de contas, os únicos impedidos de pular carnaval são os menos favorecidos, aqueles que dependem de transporte público e festas abertas e gratuitas – clubes privês e camarotes vips seguem fazendo e acontecendo, a torto e a direito (direita, extrema-direita?).
O retorno do carnaval vem sendo adiado e os conscientes seguem fazendo sua parte na esperança de que ano que vem se possa pular e brincar normalmente, com saúde e segurança. Quando acontecer será o “Carnaval da vingança”, expressão que parece indicar o desejo dos foliões de tirar o atraso dos anos e das folias de Momo perdidas, não à toa título do novo ep de Chinaina.
“Carnaval infinito” (Chinaina/ Michelle Abu) ganhou inspirado videoclipe, retratando uma espécie de carnaval possível, nestes tempos. Não deixa de ser uma dica: o ep garante alguns minutos de diversão enquanto o carnaval não volta, ao menos não como o conhecíamos.
“Eu ainda era adolescente em 1996 quando vi Chico Science e Nação Zumbi com Gilberto Gil no palco do Abril Pro Rock. Esse show foi o que eu precisava para encontrar o meu caminho na música”, confessa Chinaina em texto autobiográfico em seu site. Além da sonoridade de “Carnaval da vingança”, o ep, em que frevo e hardcore se equilibram, o videoclipe de “Carnaval infinito”, um delicioso samba-reggae, revela ainda outras referências – o artista aparece trajando uma camisa com um personagem ilustração de “Carnaval no inferno” (2009), disco dos conterrâneos da Eddie, e em determinada altura saca um Capiba de uma estante de vinis – além da greia, a zoação tipicamente pernambucana: numa parede, um quadro onde se lê “Recife é o maior bairro de Olinda”. “Eu vou fazer um carnaval infinito quando te encontrar/ eu vou fazer você perder o juízo quando me encontrar”, promete, na letra.
“Deixe-se acreditar” (Felipe S/ Chinaina/ Marcelo Campello) traz o samba como sinônimo de dança. Frevo assumido, a releitura do Mombojó conta com a presença de Felipe S, um de seus integrantes; a longa introdução instrumental, quase uma regra do ep, parece criar clima para a audiência, já que o baile vai ser mesmo na sala de casa, tirem sofás e mesas de centro do caminho, deixa eu ir até a cozinha pegar mais um petisco e outra gelada!
A expressão que dá título ao álbum aparece também no frevocore “Virando papangu”, parceria de Chinaina com Cannibal, que traz a participação especial do integrante da Devotos. “Hardcore brasileiro” (Chinaina/ Bruno Ximarú/ Hugo Carranca) é a música do Sheik Tosado que continha o título do único disco da banda, “Som de caráter urbano e de salão”, a própria definição de frevo. A regravação reafirma o que todos sabemos: “hardcore brasileiro é o frevo”. “Roupagem de orquestra com intenção de roda de pogo”, como explica o músico em texto distribuído à imprensa sobre a produção do ep, todo gravado à distância, anunciado em dezembro passado justamente quando a faixa ganhou videoclipe.
“Carnaval da vingança” é um disco agregador, como é o próprio carnaval e seus ritmos contagiantes. Além dos convidados especiais, Chinaina (voz, hihat, caxixi, TR 808, baixo, violão, berimbau, baixo, coro e sample) é acompanhado por Alex Santana (tuba), Buguinha Dub (programação), Estevão Sincovitz (guitarra em “Virando papangu”), Fabinho Costa (trompete), Gilberto Pontes (sax tenor e alto), Matheus Câmara (programação), Michelle Abu (surdo, agogô, congas, timbal), Nilsinho Amarante (trombone, arranjos e direção musical em “Deixe-se acreditar” e “Hardcore brasileiro”), Pamella Gachido (coro e voz em “Virando papangu”), Thathi (bandolim), Tom Dornelas (coro) e Tostão Queiroga (surdo, caixa, pandeiro, pratos).
A capa, de Neilton Carvalho, ajuda a relembrar o que era o carnaval, sua grandeza, força e diversidade: foliões ocupam a rua, com suas fantasias, estandarte e muita disposição. Como diz a letra de “Virando papangu”: “o povo mete medo quando quer voar”. E você? Ainda que não saibamos quando isto vai acontecer, do quê ou de quem quer se vingar no próximo carnaval?
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Ouça “Carnaval da vingança”: