A cantora carioca Zabelê já errou pelo pop decalcado das Spice Girls (com o trio de irmãs SNZ) e tentou aderir à vanguarda na estreia solo Zabelê (2015), com produção de Domenico Lancellotti e canções de Kassin, Pedro Sá, Luísa Maita e outros. Passados 21 anos da formação do SNZ, ela se entrega pela primeira vez ao DNA em Auê, um álbum com cara de EP (ou vice-versa) 100% derivado dos Novos Baianos, o grupo de origem de seus pais, Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil) e Pepeu Gomes. Não parecia haver mesmo escapatória, já que tanto a voz como as feições de Zabelê são idênticas às de Baby, embora as interpretações soem menos fogosas e atiradas.
Auê começa divergindo da irmã e ex-companheira de SNZ Sara Shiva (ex-Riroca), evangélica fervorosa dada a diatribes homofóbicas e misóginas: veste roupas novas, eletrônicas-pop-MPB, em “Masculino e Feminino” (1983), um dos maiores sucessos da carreira solo do pai Pepeu (e escrita em parceria com Baby). É aquele hit dos 1980 que pregava que “ser um homem feminino/ não fere o meu lado masculino/ se Deus é menina e menino/ sou masculino e feminino”. Zabelê acrescenta um rap à canção e chama, para cantar os versos andróginos originais, o masculino-feminino Ney Matogrosso, que fazia os Secos & Molhados enquanto uma comunidade hippie baiana-carioca fazia os Novos Baianos.
Zabelê também profana, com respeito e afeto, a trajetória da mãe Baby, hoje pastora evangélica e obcecada por religião. Relê sem purismos ou puritanismos outro hit dos 1980, “Telúrica” (1981), em que Baby não aceitava preconceito, perseguia “o pensamento das flores/ significado das flores” e mirabolava estripulias místicas em versos psicodélicos como “vejo o sol e penso em ti/ mandes prana para mim/ que esses raios de ouro cor/ penetrem nos meus chacras numa onda de amor”.
Para horror de Sara Sheeva (que afirma viver sem sexo há 18 anos), a sensualidade domina faixas como “Deusa do Amor” (1983), outra parceria Baby-Pepeu tornada sucesso na voz dele, a homoerótica “Menino Deus” (1982) e a maliciosa/feminista “Toda Donzela” (1980). Embora assinada por Caetano Veloso, “Menino Deus” é uma canção pop de ligação direta com os Novos Baianos, pois foi lançada pelo grupo A Cor do Som, do baixista Dadi Carvalho, que havia integrado os Novos Baianos e também a Admiral Jorge V, banda de apoio de Jorge Ben (Jor) em Solta o Pavão (1975) e África Brasil (1976). A letra de Caetano expira feromônios masculinos: “Menino deus/ quando a flor do teu sexo/ abrir as pétalas para o universo/ então por um lapso se encontrará nexo/ ligando os breus, dando sentido ao mundo”.
Dadi participa de Auê, inclusive em “Toda Donzela”, que conta com narração nonsense do ex-jogador Casagrande e revalida o feminismo pós-hippie de Baby Consuelo: “Toda donzela/ tem um pai que é uma fera/ (…) mas mal sabe ele/ que a fera é ela”. Fica mais engraçado quando se pensa que o pai-fera da donzela Zabelê seria o maluco-beleza Pepeu Gomes.
Outra profanação deliciosa acontece na única regravação dos Novos Baianos, da fundadora “Preta Pretinha” (1972), de Moraes Moreira e Luiz Galvão. O dueto eletro-axé aqui é com Carlinhos Brown, que acrescenta um rap baiano ao clássico samba-e-rock e entra como parceiro da composição interpolando novos versos para ela: “Eu ia lhe chamar/ enquanto corria a barca/ pra gente atravessar/ enquanto corria a barca/ da ilha pro farol/ enquanto corria a barca/ e te chamar de Sol” e “abra a porta e a janela/ e vem ver o Sol nascer/ sou aquele namorado/ que você voltou pra ver”. Soa bem gostoso.
A única inédita é a elétrica faixa de encerramento, “Menina do Brasil”, uma feliz parceria de Zabelê com Baby do Brasil e Pepeu Gomes (e com o produtor do álbum, o brasileiro radicado nos Estados Unidos Wagner Fulco, que, à revelia das enciclopédias musicais, afirma ter produzido trabalhos de Bob Dylan, Elton John, Guns ‘n Roses, Ricky Martin e Snoop Dogg). Trata-se de um mosaico passado-presente que cita “Um Raio Laser” (lançado por Pepeu em 1982), transforma “Menino do Rio” (de Caetano, gravada por Baby em 1979) em “menina do Rio” e termina brasileiríssima, após um rap transnacional à moda babilônica de Fernanda Abreu: “Na nossa geração tem fusão na canção/ tem cuíca, meninos, e a guitarra participa/ hip-hop, MPB, Stevie Wonder, pode ser/ que me digam os baianos, trio elétrico de pé/ cabelo colorido, masculino, feminino/ Caetano, Gil e a Baby do Brasil/ seu Pepeu, Jimi Hendrix, Ademilde Fonseca/ todo mundo ouviu ‘Malacaxeta‘”. A mistura é potente, e se você fecha o olho a menina ainda dança, dentro da menina.
Auê. De Zabelê. Independente.