Por que a música brasileira tem incomodado tanto a censura e os governos autoritários ao longo da história?
Um livro precioso que acaba de ser lançado vai ajudar a responder essa questão. Mordaça – Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários, de João Pimentel e Zé McGill (Sonora Editora), é uma daquelas ideias simples e brilhantes que todo mundo poderia ter tido, mas não teve. E Pimentel e McGill tiveram, então finalmente desvelamos essa história.
Produzido em tempos de recrudescimento da censura, entre 2018 e 2020, o livro concentra-se fundamentalmente no período da ditadura militar e nas histórias de embates entre os censores e os artistas. Mas não só artistas: o primeiro grande personagem do livro é o advogado João Carlos Muller Chaves, que chamou para si, em plena eclosão do golpe militar, a missão de representar compositores na difícil tarefa de liberar suas canções no Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), a antessala do absurdo.
São impagáveis as histórias de como Muller conseguiu liberar Construção, de Chico Buarque, e a estratégia de conseguir que um censor analisasse músicas e as liberasse com a boca aberta na cadeira do dentista. Das suscetibilidades comportamentais mais nonsense, como o uso de palavras como desquitada e amigar, à cruzada contra drogas sociais, como a maconha, todas as circunstâncias e arrazoados são repassados no livro, que traz fac-símiles de letras censuradas e depoimentos de dezenas de artistas tesourados (mas com texto fluido e envolvente, sem a solenidade das incontáveis teses de mestrado e doutorado que já abordaram o tema).
De Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, passando pela Blitz e pela Plebe Rude, de O Ronco da Cuíca (de João Bosco e Aldir Blanc) a Disritmia (de Martinho da Vila), o livro repassa uma saga de intolerância e desconhecimento brutais, combinação que resulta em histórias inacreditáveis. “A censura é um negócio arriscado. As pessoas mais inteligentes não entram na atividade de censura porque é uma atividade bastante ridícula”, diz Caetano.
A ação da censura é tão perniciosa, covarde e ilógica que sua presença atua como um carcinoma na consciência nacional. Por causa disso, a ação censória do governo de Jair Bolsonaro (institucionalmente e como eco, ressonância) já tem um capítulo alentado no livro. Ali, são lembradas a censura do então ministro Osmar Terra a um edital de filmes LGBT; o boicote ao filme Marighella, de Wagner Moura; o ataque a uma exposição de cartuns chamada Independência em Risco, em Porto Alegre; a blitz do então prefeito Marcelo Crivella a um gibi dos Vingadores na Bienal do Livro do Rio; o veto à peça Abrazo, da companhia Clowns de Shakespeare; a suspensão de uma comédia audiovisual do grupo Porta dos Fundos na Netflix; a interdição de um filme sobre Chico Buarque na Embaixada do Brasil em Montevidéu; um show de BNegão interrompido pela PM no Mato Grosso do Sul; a censura da EBC a um videoclipe de Arnaldo Antunes, da música “O Real Resiste”; o cerco da PM às bandas Devotos e Janete Saiu para Beber, no Recife, pela execução de uma música de Chico Science, “Banditismo por uma Questão de Classe”; a emblemática suspensão da exposição Queermuseu, entre outros casos.
FRASES DO LIVRO:
“Acho que toda aquela marcação com o meu nome começou mesmo quando aprovaram a letra de ʻApesar de Você’.” – Chico Buarque
“As pessoas mais inteligentes não entram na atividade da censura porque é uma atividade bastante ridícula.” – Caetano Veloso
“Ele não resistiu e morreu por lá mesmo, do nosso lado. Estávamos encapuzados, não víamos nada, mas ouvimos a conversa dos torturadores.” – Geraldo Azevedo
“Lembro que, no dia do golpe, os vizinhos acenderam velas em apoio aos militares. Engraçado como o Brasil não muda mesmo.” – Joyce Moreno